PENSAMENTOS GEOGRÁFICOS do PIBIDIANO DE GEOGRAFIA JÚNIOR CESAR
"Pra você que faz cara feia quando eu digo que faço GEOGRAFIA ou solta um "Hum, que legal" extremamente irônico...
Só tenho a dizer que a amplicidade dessa ciência me torna a cada dia uma pessoa melhor e aumenta ainda mais o meu amor pelas diversas Geografias que rodeiam a todos. ... Minha graduação me permite ousar a te falar um pouco sobre o universo ou da formação da Terra. Posso te explanar sobre a dicotomia do urbano X rural ou te fazer me odiar falando de política. Posso ainda demonstrar como a dispersão dos biomas estão intimamente ligados à composição do solo, ao clima e dentre outros fatores. Posso te ensinar a diferença de clima e tempo e te fazer perceber o quanto é engraçado quando você diz "Como está o clima hoje?" e te aborrecer falando de economia ou dos males do capitalismo. Posso mostrar rochas, minerais e o dinamismo das formas e estruturas do relevo. Posso ainda, descobrir contigo outras cidades, estados, países e continentes, e outros planetas também! Conto histórias também, do PR, do Brasil e do mundo e quebro a cabeça com problemas matemáticos da nossa amiga Cartografia. Questiono os problemas da educação geográfica e modifico meu modo de ensinar, para despertar a busca sagaz em aprender Geografia. São tantas ciências que a Geografia engloba, que posso ter me esquecido de algo que está ao meu domínio. Mas é isso, não existe uma ciência melhor do que a outra, mas se existisse, a Geografia seria uma forte candidata! A Geografia mexeu comigo e me fez amá-la incondicionalmente. Enfim, a Geografia é uma mãe que te acolhe e te faz refletir, questionar e propor soluções para o mundo. Ela está em toda parte, até mesmo dentro de você."
Não é difícil de compreender o entrelaçamento entre os esportes e as relações internacionais1. No caso em questão, as Olimpíadas têm sido atravessadas pela história do poder global desde que Barão de Coubertin criou sua versão moderna, em 1896. Em 1920, a Alemanha foi impedida de disputar os Jogos da Antuérpia, na Bélgica, logo depois da 1ª Guerra Mundial; em 1936, Hitler tentou usar o evento para sustentar uma suposta supremacia do homem ariano; em 1948, a Inglaterra usou seu evento em Londres para celebrar sua vitória na 2ª Guerra e prestigiar combatentes amputados com a inauguração dos Jogos Paralímpicos; entre 1964 e 1988, África do Sul sofreu boicote devido ao apartheid; durante toda a Guerra Fria, a competição expressou a rivalidade entre campos socialista e capitalista, inclusive com boicotes nos jogos de Moscou (1980) e de Los Angeles (1984); e, evidentemente, é sempre uma demonstração de soft power do país sede – promovendo sua imagem, poder financeiro, capacidade de organização, qualidade das instalações, vanguardas tecnológicas, desempenho esportivo, etc.
Como o poder passa pela construção da imagem, não surpreende o desconhecimento ou invisibilização de que alguns dos esportes modernos já tinham tido suas primeiras versões em outras civilizações não-ocidentais. Na China antiga apareceram formas rudimentares de futebol, golfe, polo, lutas e ginástica, quase sempre em conexão com o treinamento militar. Inclusive a FIFA identificou em 2004 a província de Shandong como o berço das primeiras manifestações de futebol, há cerca de 2.300 anos – e, pasmem, existe registro de equipe feminina de futebol desde 900 d.C. Por razões de profundo etnocentrismo, a genealogia dos esportes é demasiado eurocentrada e, no caso das Olimpíadas, localizada na Grécia.
Em perspectiva histórica, uma visada no quadro histórico de medalhas permite observar certa correlação entre poder global e desempenho esportivo. No quadro de medalhas, os EUA ainda mantém a liderança, tendo alcançado 2553 medalhas, sendo 1022 de ouro, em 27 Jogos Olímpicos de Verão. As potências mundiais lideram o quadro, bem como foram sede da maioria dos Jogos. A China está na quarta posição, com 716 medalhas, sendo 212 de ouro, em apenas 10 participações. Chama a atenção o segundo lugar das extintas URSS, com 1010 medalhas, sendo 395 de ouro, em apenas 9 edições e o nono lugar da Alemanha Oriental, com 409 medalhas, sendo 153 de ouro, em apenas 5 edições. Registre-se: de uma maneira geral, os países socialistas deram grande ênfase ao desenvolvimento dos esportes.
O caso da China reflete suas dificuldades e isolamento internacional após a revolução, tendo ficado 7 edições sem participar. Ao mesmo tempo, expressa a acelerada escalada de desenvolvimento do país: estreia nos Jogos em 1932, com Liu Changchun, e, em 1984, retorna ao evento ocupando a 4ª posição, com um total de 32 medalhas, sendo 15 de ouro. Ficou em 3º em Sydney (2000), 2ª em Atenas (2004), 1º em Pequim (2008), 2º em Londres (2012), 3º no Rio de Janeiro e, agora, novamente no 2º em Tóquio (2020) – uma medalha de ouro (38) atrás dos EUA (39).
Esta trajetória da China tem, obviamente, relação direta com o desenvolvimento e o projeto nacional do país e suas políticas públicas para os esportes. Antes da década de 1980, o governo era responsável por financiar e supervisionar os assuntos e operações relacionados ao esporte planejado centralmente. Mesmo com as reformas e crescimento do mercado esportivo, a criação da Administração Geral do Esporte do Estado, em 1998, manteve amplo controle das operações centradas no governo. A SGAS está intimamente ligada à Federação Esportiva da China e ao Comitê Olímpico Chinês para desenvolver planos de desenvolvimento do esporte a longo prazo. Nesse sentido, os Jogos Nacionais da China, ao estilo das Olimpíadas, é um evento enorme, em que cada província envia uma equipe para competir, permitindo preparar atletas de elite para as principais competições mundiais. Além disso, a Lei do Esporte da República Popular da China, em vigor desde 1º de outubro de 1995, tornou-se um documento para estabelecer tarefas e princípios fundamentais na gestão da indústria do esporte. Todas as políticas públicas para o esporte, ademais, se relacionam com a promoção de saúde e bem estar.
Em 2008, com os Jogos de Pequim, a China percebeu como uma grande oportunidade de se colocar como um país em rápida transformação e progresso. Como de praxe, buscou exibir sua imagem por meio de um evento primorosamente organizado, com instalações impactantes, como o Estádio Ninho do Pássaro e o Centro Aquático conhecido como Cubo de Água. Por seu turno, Washington tentou minar o soft power chinês politizando ao máximo o evento, insuflando boicotes através de personalidades e estimulando movimentos anti-chineses (como manifestações “Free Tibet” no roteiro da tocha olímpica ou protestos relacionados ao conflito de Darfur).
Agora em 2022, quando Pequim sediará os Jogos Olímpicos de Inverno, as disputas tendem a escalar novamente. De um lado, a China pretende expor ao mundo seu desenvolvimento, seja através do vanguardismo técnico-financeiro do e-RMB (uma inédita cripto nacional), seja através de instalações sustentáveis voltadas a promover o bem estar social. Além disso, objetiva utilizar o evento para estimular a prática de exercícios regulares e, com efeito, a saúde da população, assim como promover a indústria e os serviços relacionados ao esporte nacional para gerar mais US$ 770 bilhões até 2025. De outro, já há manifestações nos EUA e Reino Unido que buscam inflamar a opinião pública para boicotar os Jogos de 2022, sob alegação de violação de direitos humanos em Hong Kong e Xinjiang.
Enfim, é evidente que o crescimento da China nos esportes não está descolado da sua trajetória geoeconômica e geopolítica. A inquietação dos EUA com a crescente capacidade do país oriental se expressa em todos os âmbitos, inclusive nos esportes, como ficou claro novamente na competição em Tóquio. Contudo, ao divulgar o quadro de medalhas pelo número total, ao invés do tradicional contagem pelo número de ouro, como fez durante a maior parte do evento, só reflete a incapacidade de Washington para lidar com a irrefreável ascensão chinesa.
China, a nova globalização e o Brasil pasmado
Nova potência ascendente, China aposta em novos arranjos geopolíticos, fora dos domínios dos EUA e em tecnologias transformadoras. Momento é histórico, similar ao declínio dos impérios europeus, mas diplomacia brasileira fecha os olhos
MAIS: Em esforço para compreender em profundidade a China, Outras Palavras publica série de textos do cientista político e geógrafo brasileiro Diego Pautasso, que estuda o país asiático há 15 anos. Uma entrevista com o autor pode ser vista aqui. O artigo a seguir foi publicado originalmente no site Bonifácio. Leia todos os artigos da série
Para fechar a série, abordaremos o panorama recente da história das relações internacionais, de forma a iluminar os atuais descaminhos da ordem global. Inicialmente, é preciso destacar que os EUA conseguiram consolidar sua hegemonia após as Guerras Mundiais, a partir da conformação das estruturas de poder vigentes ainda hoje no âmbito multilateral. E, apesar da bipolaridade e rivalidade com a URSS no período da Guerra Fria, os interesses de Washington triunfaram em escala internacional.
Com o colapso do campo soviético, abriram-se margens para a ascensão de narrativas marcadas mais por desejos do que pela objetividade analítica. Tanto os discursos do ‘fim da história’ e do mundo unipolar ignoravam tendências à multipolarização; quanto aqueles que anunciavam o recorrente declínio dos EUA – desde a década de 1970 – ignoravam seu persistente poder econômico e geopolítico.
Dessa forma, o desaparecimento da URSS permitiu a Washington potencializar seus interesses em escala global, ao menos num primeiro momento. De um lado, reafirmou a imposição das políticas neoliberais a diversos desses polos ascendentes, cujo resultado foi a fragilização de parte de seus parques industriais, o estreitamento dos direitos sociais, a eclosão de recorrentes crises financeiras e a potencialização das instabilidades político-institucional. De outro, redefiniu os parâmetros de suas escaladas intervencionistas a partir da agenda de combate ao terrorismo e ao fundamentalismo e/ou sob pretexto de defesa da democracia, do meio ambiente, do livre mercado e dos direitos humanos. Sem falar nas contumazes instrumentalizações de embargos e sanções econômicas, intervenções militares “humanitárias” ou políticas de regime change e revoluções coloridas – novas formas para as velhas práticas de covert actions e golpes de Estado.
Em 2018, a China ultrapassou os Estados Unidos e tornou-se o primeiro país do mundo em número de patentes registradas.
O que os entusiastas da unipolaridade não esperavam era o irrefreável e avassalador processo de desenvolvimento chinês, com importantes desdobramentos geoeconômicos e geopolíticos. Embora o PIB per capita estadunidense ainda seja bastante superior ao chinês, em 2050, segundo a PwC, a China terá nada menos do que 20% do PIB mundial medido em PPP, ante 12% dos EUA. Em termos de produção manufatureira, a China já responde por 28% da manufatura global, tão grande quanto a dos EUA, do Japão e da Alemanha juntos. Em função do peso da sua economia, a China é a principal parceira comercial de 130 países do mundo – o que suscita progressivo efeito gravitacional.
Em 2019, na condição de segunda maior economia do mundo em PIB nominal, a China (U$S 14,1 trilhões) já correspondia a quase Japão, Alemanha, Índia e Reino Unido juntos, com somatório de U$S 14,7 trilhões. Graças ao seu desempenho, a economia chinesa tem contribuído com cerca de 25 a 35% do crescimento mundial na última década (o dobro da participação dos EUA). A China tem 40% do mercado global de contêineres (ante 18% dos EUA), e 7 dos 10 principais portos marítimos mundiais (o maior dos EUA é o de Los Angeles, o 17º). Alguns dados são ainda mais surpreendentes: a China usou mais cimento entre 2011 e 2013 do que os EUA em todo o século XX. Em 2019, a China produziu 996,3 milhões de toneladas de aço bruto, enquanto os EUA produziram 87,9 milhões. O mercado chinês tem ainda uma classe média de cerca de 350 milhões de pessoas (maior que a dos EUA desde 2015), em franco processo de expansão.
O e-commerce chinês deste ano detém números quase quatro vezes maiores do que o estadunidense. Também neste ano, a China está chegando à marca de 900 milhões de usuários de Internet. E são mais de 35 mil km de trens de alta velocidade cortando o país, além de uma notável modernização infraestrutural. Em 2018, a China superou os EUA em número de patentes registradas, e já forma anualmente cerca de quatro vezes mais profissionais nas áreas de ciências, tecnologia, engenharia e matemática do que seu rival. A trajetória explicita os ritmos e volumes distintos e superiores com os quais a China vem liderando outros tantos segmentos – como destacamos no artigo sobre inovações em energias sustentáveis.
Assim, a China tem atuado para reformar e/ou influenciar as estruturas hegemônicas introduzidas, construídas e potencializadas historicamente sob a liderança de Washington, tais como o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial e a Organização Mundial do Comércio (OMC). E, simultaneamente, Pequim tem promovido novos arranjos econômicos multilaterais, tais como o Novo Banco de Desenvolvimento (NBD) dos BRICS e o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (AIIB); o Sistema de Pagamento Internacional da China, alternativo ao Swift; o China UnionPay, ao invés das bandeiras Visa e Master, e o Centro de Avaliação de Crédito Universal, em detrimento a Moodys ou Standard & Poors; áreas comerciais como a Parceria Regional Abrangente, entre outras. Nesse mesmo sentido, o governo chinês move-se na direção da concertação diplomática, equalizando instrumentos tais como os BRICS, a Organização da Cooperação de Xangai (OCX), o Fórum de Bao para a Ásia e, sobretudo, a Nova Rota da Seda – a mais acabada demonstração do que chamamos de projeto chinês de globalização, alternativo ao paradigma do Consenso de Washington.
Voltando à história. Mais do que refletir a existência de um mundo bipolar, a Guerra Fria foi também o período de consolidação da hegemonia internacional estadunidense, sob a égide de uma estratégia de contenção ao polo rival socialista, anti-sistêmico. Cada vez mais, os noticiários e analistas ressuscitam o termo, mencionando a existência de uma Nova Guerra Fria. São sabidas as diferenças e semelhanças entre um e outro contexto. É nítido que a URSS e os EUA não detinham a sinergia econômico-comercial bilateral que têm hoje China e EUA; a competição técnico-produtiva não era tão aguda; os blocos possuíam maior coesão político-ideológica (não obstante as fraturas existentes em ambos, como ilustram os casos das relações da URSS com a Iugoslávia, a Albânia e a China). Por outro lado, as semelhanças também são importantes: as duas superpotências, apesar das assimetrias, eram dirigidas por forças políticas que reivindicavam, antagonicamente, o capitalismo e o socialismo; e as disputas entre os dois pólos eram travadas de forma mais clara em terceiros cenários.
Importa notar, pois, que o recrudescimento da retórica anti-chinesa – acirrada com o recente discurso de Mike Pompeo sobre A China Comunista e o Futuro do Mundo Livre – ajuda a iluminar a direção das contradições que se desenham. Ele instou “uma luta entre o mundo livre e a tirania”, e acusou o Partido Comunista Chinês de ser um “opressor nacional” e um “agente internacional desonesto”. Ora, são translúcidos certos elementos de continuidade: a China é, indiferentemente do debate acerca do quão anti-sistêmico é seu modelo, um país desafiante da hegemonia estadunidense, e comandado por um Partido Comunista de tradições marxistas-leninistas. Nesse sentido, os EUA replicam a lógica de contenção como forma de coesionar seus aliados e evitar a expansão do rival. Em suma, a Guerra Comercial, o apoio aos movimentos separatistas na China, o cerco militar, etc. fazem parte de um conjunto mais amplo de ações que obedecem a essa coerência sistêmica.
É auto-evidente, contudo, que a história não se replica. Desde o final da década de 1960, a China abandonou a antiga política de fomento às revoluções socialistas em terceiros países, ainda que mantenha importantes laços ideológicos com os Estados nacionais onde o socialismo orienta as políticas governamentais. A ênfase da inserção internacional chinesa recai exatamente no pragmatismo, no respeito ao princípio da não-intervenção em assuntos domésticos de outras nações e, mais contemporaneamente, na busca da promoção das chamadas relações win-win. Afinal, diferentemente da URSS, Pequim tem conseguido, como já demonstrado, fazer frente aos competidores nas searas científico-tecnológica e econômico-comercial. Por paradoxal que pareça, a instrumentalização de conflitos internos de terceiros países, as ações voltadas à mudança de regimes políticos e a obstrução das ferramentas de concertação política multilaterais partem exatamente dos EUA, visando impedir o fortalecimento do gigante asiático.
Em suma, o fato é que se configura um período de transição sistêmica, prenhe de contradições. Para além da competição sino-estadunidense, está em curso uma profunda reorganização produtivo-tecnológica e civilizacional, com certos movimentos disruptivos precipitados pelo inesperado panorama da pandemia. E é nesse cenário complexo em que devemos pensar o papel a ser cumprido pelo Brasil.
Inicialmente, algumas lições são importantes: no começo do século XX, o Barão do Rio Branco, patrono da diplomacia brasileira, percebeu o deslocamento da hegemonia global dos braços da Grã-Bretanha para os dos EUA, e por isso estabeleceu a chamada aliança não-escrita com Washington, crucial para a potencialização de nossa autonomia e interesses nacionais à época. Já durante o ciclo desenvolvimentista, entre a Revolução de 1930 e a década de 1980, o Brasil adentrou seu mais notável período de modernização, sustentando um paradigma de inserção internacional sem alinhamento automático, apesar da interação privilegiada com os EUA.
Na atualidade, contudo, não se pode negar a condição de potência ascendente da China, tampouco o fato de que o principal eixo da economia mundial se desloca, progressivamente, para a Ásia Oriental. Ora, se foi Geisel, no ápice da bipolaridade, quem reatou com Pequim, colocando os interesses nacionais acima das preferências ideológicas, cabe ao Brasil de hoje se movimentar de forma a tirar o melhor proveito da competição sino-estadunidense.
O estabelecimento de um alinhamento automático com a potência declinante e a internalização de polarizações de uma Nova Guerra Fria contribuem apenas para dividir artificialmente o país e turvar a necessária concretização dos interesses nacionais de longo alcance. Resta, pois, a formatação de uma política externa compatível com as demandas, capacidades e responsabilidades de um país da envergadura do Brasil, moldando seus rumos em prol do desenvolvimento e da soberania nacionais. E sem compreendermos as nuances da atual encruzilhada sistêmica e o papel da China no mundo, dificilmente alcançaremos tal empreendimento.
SOBERANIA
Base de Alcântara: Brasil cede a Trump o melhor local do mundo para lançar satélites
Para Flávio Rocha, especialista em geopolítica, Bolsonaro busca alinhamento com Estados Unidos a curto prazo
Os esforços para concretizar o acordo foram retomados pelo governo Temer (MDB) em 2016, após duas tentativas frustradas: no Congresso Nacional, em 2001, e por meio de plebiscito, na mesma época. A proposta original do governo estadunidense era proibir a utilização da base pelo Brasil, devido à confidencialidade tecnológica.
Professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC (UFABC), Flávio Rocha afirma que, a partir dessa nova negociação, os Estados Unidos teriam acesso ao local mais estratégico – de todo o mundo – para lançamento de satélites. O especialista em geopolítica e segurança internacional entende que o acordo é motivado por uma política "ultra-neoliberalizante".
“Busca-se um alinhamento geopolítico a todo custo, a curto prazo, com os Estados Unidos”, avalia Rocha, que é enfático ao afirmar que a negociação da base de Alcântara coloca a soberania do país sob perigo.
“O maior risco que vejo nisso é uma perda de autonomia política e ideológica do país para desenvolver uma série de tecnologias que seriam de interesse nacional. São tecnologias que nos permitiriam escolher parceiros estratégicos, parceiros para desenvolver toda uma gama de ciência e tecnologias, que poderiam colocar o Brasil em um patamar distinto do que ele está hoje na comunidade científica mundial”, complementa.
Na opinião do docente, o acordo “governo a governo”, sem a opinião de pesquisadores e especialistas da área, não foi feito de forma transparente.
Confira na íntegra entrevista com Flávio Rocha ao Brasil de Fato sobre as consequências da negociação da Base de Alcântara.
Brasil de Fato: O que esse novo acordo significa, na prática?
Flávio Rocha: Precisamos entender ainda, verificar e ler os documentos. Até agora, o que está sendo veiculado na imprensa são declarações. Declarações do embaixador brasileiro em Washington, declarações das partes brasileiras ligadas especialmente a uma pequena parte das comunidades científicas que têm interesse em reativar o programa espacial. Precisamos ter mais detalhes, mas, no curto prazo, os Estados Unidos vão ter acesso ao melhor local para se instalar veículos lançadores de satélites do mundo. É um local cuja geografia ajuda muito.
O custo para se lançar satélites da Base de Alcântara vai ser muito menor que se lançar na Guiana Francesa, que é logo ali perto. Isso dá uma vantagem comercial muito grande para os Estados Unidos, especialmente no momento em que há uma competição tecnológica muito séria e muito forte com a China. Essa competição está se espraiando para o setor aeroespacial.
Para os Estados Unidos, será um excelente negócio. O problema é se isso vai ser um negócio tão excelente assim para o Brasil. Quando fazem acordo com parceiros que possuem tecnologias inferiores, os EUA não costumam ser cooperativos como quando fazem com potências que possuem capacidade industrial e tecnológica equivalente – como é o caso dos europeus e dos japoneses, para citar dois exemplos.
A grande dúvida que resta aqui é: o que o Brasil vai ganhar, especificamente, em termos de avanço da sua tecnologia aeroespacial e avanço comercial derivado dessa tecnologia, em um contexto onde há o acirramento de uma competição geopolítica internacional, em um contexto em que há o acirramento de uma competição econômica em torno do uso do espaço?
Os Estados Unidos vão ter grandes vontades. Resta saber o que vai acontecer com o Brasil. Até agora, não está claro.
Quais forças se articularam para que esse novo acordo acontecesse, depois de tantos anos? Por que ele foi aprovado com apenas três meses de governo Bolsonaro?
Há um desejo por esse acordo por parte dos Estados Unidos e de alguns grupos do Brasil há muito tempo, e isso nunca foi para frente por algumas razões. Uma delas é que nos governos Lula e Dilma não se considerou que os Estados Unidos seriam um parceiro confiável, no sentido de poder fazer um acordo de igual para igual. O governo Bolsonaro tem uma pauta ultra-neoliberalizante do ponto de vista da economia, ou seja, busca conseguir recursos fora da base do governo da maneira mais obsequiosa possível. E também se tem uma busca – até meio inacreditável – por um alinhamento geopolítico a todo custo, a curto prazo, com os Estados Unidos.
No governo Bolsonaro, o que se tem é o seguinte: a busca por esse alinhamento, principalmente, mas também a questão econômica, pesando na feitura desse acordo-relâmpago com os Estados Unidos. Não está se pesando, por exemplo, se seria interessante procurar outros parceiros ou fazer uma proposta de acordo de flexibilizar para que o Brasil tivesse a possibilidade de trazer outros parceiros também.
Basicamente, há a confluência desses dois interesses: o interesse econômico ultra-neoliberalizante e a pauta de alinhamento geopolítico irrestrito com os EUA a curto prazo. Resta saber, nos próximos cinco ou dez anos, se esse alinhamento irrestrito vai continuar.
A experiência que temos na história do Brasil é que os períodos de alinhamento irrestrito com os Estados Unidos nunca foram lucrativos para o país. Os governos que fizeram isso foram rapidamente sucedidos por governos que trataram de priorizar o interesse nacional e tirar o alinhamento da ordem do dia. Um exemplo que posso dar é o do próprio regime militar. Os militares fizeram, em um primeiro momento, um alinhamento muito próximo dos EUA, e o próprio regime militar com o governo Geisel tratou de se afastar para priorizar outros interesses do Brasil.
Qual os impactos da presença estadunidense no Brasil?
O risco mais imediato é que haverá uma base na qual os Estados Unidos lançaram satélites, e não fica claro qual o tipo de satélites que lançarão. Provavelmente, serão satélites de telecomunicação, tecnologia, mas não saberemos se vão lançar satélites especificamente destinados a comunicações militares, espionagens, enfim.
Fizemos um acordo de venda da Embraer para a Boeing americana, e a Boeing está fortemente integrada ao programa aeroespacial dos Estados Unidos. O maior risco que vejo nisso é uma perda de autonomia política e ideológica do país para desenvolver uma série de tecnologias que seriam de interesse nacional. Essas tecnologias nos permitiriam escolher parceiros estratégicos, parceiros para desenvolver toda uma gama de ciência e tecnologias, que poderiam colocar o Brasil em um patamar distinto do que ele tem hoje na comunidade científica mundial.
O risco maior que vejo, a curto prazo, é esse alinhamento prejudicar nosso desenvolvimento autônomo. Não digo autônomo no sentido de se desenvolver sozinho, porque na ciência atual isso não existe, mas uma autonomia em que o Brasil possa dizer como quer desenvolver, como quer escolher isso, como quer aplicar esse desenvolvimento científico.
Quando se faz um tipo de parceria dessas com os Estados Unidos, um coisa certa em qualquer acordo do gênero é que existem vetos da cessão dessa tecnologia, da comercialização, para os países que são desafetos dos EUA. Para fazer esse acordo, vamos ter que adotar, pelo menos parcialmente, uma visão geopolítica deles que não necessariamente é do nosso interesse.
Então, o Brasil está abrindo mão de um setor estratégico e coloca sua soberania em risco?
Sim, sem dúvida. Tentamos nos últimos dez, quinze anos, instalar uma base para construir uma indústria aeroespacial no país, uma indústria de ponta. São vários cursos de engenharia aeronáutica e aeroespacial no Brasil que foram construídos com essa lógica. Esses cursos só têm sentido de existir se há esperança de fornecer uma indústria nesse setor.
Com essa parceria com os Estados Unidos, junto com a venda da Embraer, o Brasil vai ficar relegado a desenvolver tecnologias que não são de ponta, mas sim, de apoio e de suporte. Do ponto de vista da soberania, o Brasil vai ficar, realmente, em uma posição muito submissa. De continuar a desenvolver não uma tecnologia de ponta, mas tecnologias acessórias do seu plano espacial.
Em termos geopolíticos, a estratégia dos Estados Unidos parece ser a de impedir o surgimento de novas potências.
Sem dúvidas. Os Estados Unidos têm uma política externa que, nesse ponto, é muito clara. Eles têm que impedir a existência, o desenvolvimento de potências geopolíticas rivais que, de alguma maneira, não estejam de acordo com seus interesses. Criando uma amarração tecnológica dessas, se cria um obstáculo para o Brasil fazer um tipo de política externa de cunho mais nacionalista, para se tornar uma potência regional.
O Brasil já é uma potência e, nos últimos anos, desenvolveu uma visão muito independente dos interesses dos Estados Unidos. Nesse governo, especificamente, estamos vendo uma reversão disso. Esse acordo tem a lógica de colaborar com essa reversão. O Brasil não se concebe nesse governo como um país que não esteja alinhado sob a liderança dos EUA.
O que o governo Bolsonaro tem feito é uma coisa que está surpreendendo todo mundo. As coisas estão indo com rapidez, como se o governo fosse acabar amanhã. Falta um debate mais amplo. Não ouvimos falar que a comunidade científica brasileira pode opinar sobre isso.
Foi um acordo governo a governo, feito de uma maneira não transparente. Geralmente, quando esses acordos são feitos de maneira não transparente, geram dúvidas. Quais são as salvaguardas disso? Qual é o plano B se esse acordo der errado? Se amanhã o governo americano estabelecer vetos a usos de recursos e tecnologias, como o Brasil vai reagir? Realmente, é uma coisa que vai amarrar o desenvolvimento brasileiro.
Não vamos conseguir, nos marcos do capitalismo, desenvolvermos uma indústria aeroespacial que faça uma concorrência a indústria aeroespacial americana. E é uma pena, porque geograficamente estamos no melhor local do mundo para fazer lançamento desse tipo de satélite.
Podemos caracterizar essa política como "entreguista"?
Eu vejo dessa forma. É lógico que há um limite estrutural. A própria estrutura do Brasil não deixa fazer isso em 100% dos casos. Mas, nesse caso específico, do setor aeroespacial, vejo uma política de entrega do desenvolvimento, da elaboração de políticas públicas. Está se alienando essa possibilidade em prol de uma colaboração com uma potência estrangeira.
Os Estados Unidos são o país que mais tem bases ao redor do mundo. Essa localização de Alcântara, no Nordeste brasileiro, em frente à África Ocidental, é ideal para um projeto de dominação.
Existe uma competição geopolítica muito clara. Os últimos documentos do governo Trump mostram taxativamente que é uma política de Estado considerar a China e a Rússia como potências rivais, que querem minar a influência dos Estados Unidos no mundo. Então, dentro dessa lógica, eles concebem o continente americano como uma área de domínio exclusivo, área de sua preponderância exclusiva.
Ao posicionamento em Alcântara é fazer de uma maneira rápida, antes que algum outro governo tenha a ideia de fazer algum tipo de acordo parecido, como por exemplo, a China.
Infelizmente, em curto prazo é isso. Ainda vamos ouvir, inclusive de fontes governamentais, reclamação sobre o acesso de cientistas brasileiros aos dados de pesquisa, dos lançamentos que têm em Alcântara.
Os Estados Unidos podem até fazer um acordo de igual PARA igual com países que estão no mesmo nível tecnológico. Mas com um país que tem uma indústria aeroespacial que não decola por vários motivos, que tem um governo que não se preocupa em fortalecer a indústria, com esse tipo de país, os Estados Unidos vão fazer um acordo no qual eles serão a parte forte e vão impor sua visão em detrimento da nossa.
ALTA DO PETRÓLEO NO MUNDO E AS POLITICAS DE PREÇO DA PETROBRAS
Os países exportadores de petróleo estão há, pelo menos, um ano e meio reduzindo a oferta, com queda na produção de cerca de 1,8 milhão de barris por dia, junto a isso a crise na Venezuela e a tensão EUA x Irã contribuem para o aumento do preço do barril de petróleo. A Petrobras possui mais de 600 mil acionistas, sendo uma companhia de capital misto, ficando o governo federal com 63,5% das ações ordinárias (ON, com direito a voto) e de 23% das ações preferenciais (PN, sem direito a voto), o restante 13% por cento ações de capital privado. Desde de 2016 a empresa adotou uma politica de preços seguindo o mercado internacional, com a justificativa de recuperar suas finanças. Com isto passa diminuir a produção de combustível em nossas refinarias, nos obrigando a importar mais combustível para atender e demanda interna. No Brasil 80% do combustível consumido é produzido com petróleo nacional, enquanto só 20% são importados. O custo da produção nacional é estimado em US$ 30 a US$ 40 o barril e da produção internacional cerca de US$ 80 por barril (maio/2018). Se levássemos em conta o custo interno os preços poderiam ser mais baixos e mesmo assim a nossa petrolífera teria lucro, quanto ao imposto poderia ser compensatório flutuante, maior quando o petróleo estiver em baixa e menor em períodos de alta. A simples troca no comando da Petrobras não mudará o panorama da constante alta de preços dos combustíveis, pois temos um governo federal sem compromisso com sua população, sem vontade politica de mudar a politica de preço dos combustíveis.
O que é hoje o Eurasianismo? Que tipos de conceitos de Eurásia existem? — Sete sentidos da palavra Eurasianismo — A evolução da noção de Eurasianismo
Mudanças no significado original de Eurasianismo Diferentes termos perdem seu significado original ao longo dos anos, apesar de seu uso cotidiano. Noções tão fundamentais quanto socialismo, capitalismo, democracia, fascismo mudaram profundamente. Na verdade, eles se tornaram banais. Os termos “Eurasianismo” e “Eurásia” possuem também certas inseguranças por serem novos, eles pertencem a uma nova linguagem política e contexto intelectual cuja criação está apenas no início. A idéia eurasiana reflete um processo dinâmico muito ativo. Seu significado tem se tornado mais claro ao longo da História, mas necessita de desenvolvimento adicional.
Eurasianismo como uma luta filosófica A idéia eurasiana representa uma revisão fundamental da história política, ideológica, étnica e religiosa da humanidade, e oferece um novo sistema de classificação e de categorias que suplantará os clichês estabelecidos. A teoria eurasiana se formou em duas etapas — um período de formação do eurasianismo clássico no início do século XX por intelectuais emigrantes (Trubeckoy, Savickiy, Alekseev, Suvchinckiy, Iljin, Bromberg, Hara-Davan etc.) seguido pelos trabalhos históricos de Leonid Gumilev e, finalmente, a constituição do neo-eurasianismo (a partir da segunda metade da década de 1980).
Rumo ao neo-eurasianismo A teoria eurasiana clássica pertence indubitavelmente ao passado e pode ser corretamente classificada como parte das ideologias do século XX. O eurasianismo clássico pode ter passado, mas o neo-eurasianismo lhe proporcionou um segundo nascimento, um novo sentido, escala e significado. Quando a idéia eurasiana emergiu das cinzas, tornou-se menos óbvia, mas já revelou seu potencial oculto. Por meio do neo-eurasianismo, toda a teoria eurasiana ganhou uma nova dimensão. Não podemos ignorar hoje o grande período histórico do neo-eurasianismo e devemos tentar compreendê-lo em seu contexto. A seguir, descreveremos os vários aspectos deste conceito.
Eurasianismo como uma tendência global
A Globalização como a estrutura principal da história moderna Em sentido amplo, a idéia eurasiana e até mesmo a Eurásia enquanto conceito não correspondem estritamente às fronteiras geográficas do continente eurasiano. A idéia eurasiana é uma estratégia de escala global que reconhece a objetividade da globalização e o fim dos “estados-nações” (Etats-Nations), mas ao mesmo tempo oferece um cenário de globalização que não implica em um mundo unipolar ou em um governo global unificado. Em vez disso, ela oferece várias zonas globais (pólos). A idéia eurasiana é uma alternativa ou versão multipolar da globalização, mas a globalização é no presente o processo mundial mais fundamental decidindo o vetor principal da história moderna.
Paradigma da globalização — o paradigma do Atlantismo O estado-nação hodierno está sendo transformado em um estado global; estamos diante da constituição de sistemas de governo planetário no interior de um único sistema econômico-administrativo. É um erro acreditar que todas as nações, classes sociais e modelos econômicos devem repentinamente começar a cooperar nas bases desta nova lógica planetária. A globalização é um fenômeno unidimensional e unilateral que tenta universalizar o ponto de vista ocidental (anglo-saxão, americano) de como melhor gerenciar a história humana. É a unificação em um só sistema (frequentemente associada à supressão e à violência) de diferentes estruturas nacionais, sócio-políticas, étnicas e religiosas. É uma tendência histórica da Europa ocidental que alcançou seu auge através do domínio dos Estados Unidos da América. A globalização é a imposição de um paradigma atlantista. A globalização enquanto atlantismo busca evitar esta definição de todas as formas. Os proponentes da globalização argumentam que quando não houver mais alternativa ao atlantismo, ele cessará de existir. O filósofo político americano F. Fukuyama escreveu sobre o “fim da História”, que significa na verdade o fim da história geopolítica e do conflito entre atlantismo e eurasianismo. Isto significa a arquitetura de um novo sistema mundial sem nenhuma oposição e com um único pólo — o pólo do atlantismo. Podemos também nos referir a esta arquitetura como Nova Ordem Mundial. O modelo de oposição entre dois pólos (Leste-Oeste, Norte-Sul) se transforma no modelo de centro-periferia (centro — Ocidente, “norte rico”; periferia — sul). Esta variante de arquitetura mundial está em desacordo completo com o conceito de eurasianismo.
Há uma alternativa à Globalização Unipolar Atualmente, a Nova Ordem Mundial é nada mais do que um projeto, um plano, ou uma tendência. É muito grave, mas não fatal. Os adeptos da globalização negam qualquer alternativa para o futuro, mas vemos hoje um fenômeno anti-globalista em larga escala, e a idéia eurasiana coordena de um modo construtivo todos os oponentes da globalização unipolar. Mais ainda, oferece a idéia concorrente de globalização multipolar (ou alter-globalização).
Eurasianismo como pluriverso O eurasianismo rejeita o modelo mundial de centro-periferia. Em vez disso, a idéia eurasiana defende que o planeta consiste de uma constelação de espaços vivos parcialmente autônomos e abertos uns aos outros. Estas áreas não são as dos estados-nacionais, mas as de uma coalizão de Estados, reorganizados em federações continentais ou “impérios democráticos” com um largo grau de auto-governo interno. Cada uma destas áreas é multipolar, incluindo um complicado sistema de fatores administrativos, religiosos, culturais, e étnicos. Em um sentido global, o eurasianismo está aberto a todos, independente do lugar de nascimento, residência, cidadania e nacionalidade. O eurasianismo providencia a oportunidade de escolha de um futuro diferente do clichê do atlantismo e um sistema de valor para toda a humanidade. O eurasianismo não se limita à busca do passado ou à preservação do presente status quo, mas luta pelo futuro, reconhecendo que a estrutura atual do mundo precisa de mudanças radicais, que as sociedades industriais e estados-nacionais exauriram todos os seus recursos. A idéia eurasiana não vê a criação de um governo mundial fundamento nos valores liberal-democráticos como o único caminho para a humanidade. Em seu sentido mais fundamental, o eurasianismo se define no século XXI pela adesão à alter-globalização, sinônimo de um mundo multipolar.
O atlantismo não é universal O eurasianismo rejeita por completo o universalismo do atlantismo e do americanismo. A configuração da Europa ocidental e da América possuem elementos muito atraentes, que podem ser adotados e prezados, mas em sua totalidade é meramente um sistema cultural que tem o direito de existir em seu próprio contexto histórico, ao lado de outros sistemas culturais e civilizacionais. A idéia eurasiana protege não apenas os sistemas de valores anti-atlantistas, mas a diversidade das estruturas de valor. É um tipo de “poliverso” que providencia espaços vitais a todos, incluindo os Estados Unidos e o atlantismo ao lado de outras civilizações, pois o eurasianismo também defende as civilizações da África, de ambos os continentes americanos, e da área do Pacífico paralela à Terra Mãe eurasiana.
A idéia eurasiana promove uma idéia revolucionária global A idéia eurasiana, numa escala global, é um conceito revolucionário que clama por uma nova base de entendimento mútuo e cooperação entre um grande conglomerado de poderes distintos: os Estados, nações, culturas, e religiões que rejeitam a versão atlantista da globalização. Se analisarmos as declarações e afirmações de vários políticos, filósofos e intelectuais veremos que a maioria deles é adepta (alguns inconscientemente) da idéia eurasiana. Se pensarmos em todos estes que discordam do “fim da História”, nossos ânimos se elevam, e torna-se mais realista o fracasso da visão estratégica americana de segurança coletiva para o século XXI, ligada à constituição de um mundo unipolar. O eurasianismo é a soma dos obstáculos naturais, artificiais, objetivos e subjetivos no caminho da globalização unipolar; oferece uma oposição construtiva e positiva ao globalismo em vez de simples negação. Estes obstáculos, no entanto, permanecem descoordenados, e os proponentes do atlantismo estão aptos a administrá-los. Mas, se estes obstáculos puderem de alguma maneira ser integrados em uma força unificada, a possibilidade de vitória se tornará maior.
Eurasianismo enquanto Velho Mundo (Velho continente) O Novo Mundo é uma parte do antigo Velho Mundo, ou um sentido mais especifico e estrito de eurasianismo aplicável ao que chamamos de Velho Mundo. O conceito de Velho Mundo (tradicionalmente aplicado à Europa) pode ser considerado em um contexto muito mais amplo. É um super-espaço multi-civilizacional, habitado por nações, estados, culturas, etnicidades e religiões ligadas umas às outras histórica e geograficamente por um destino dialético. O Velho Mundo é um produto orgânico da história humana. O Velho Mundo é frequentemente colocado em oposição ao Novo Mundo, o continente americano descoberto pelos europeus e transformado em base para uma civilização artificial, no qual os projetos europeus de modernismo foram criados. O Novo mundo foi construído a partir de ideologias humanamente produzidas como uma civilização de puro modernismo. Os Estados Unidos são a mais bem sucedida criação da “sociedade perfeita”, formada por intelectuais da Inglaterra, Irlanda e França, enquanto os países da América Central e do Sul permaneciam colônias do Velho Mundo. A Alemanha e a Europa Oriental foram menos influenciadas pela concepção de “sociedade perfeita”. Nos termos de Oswald Spengler, o dualismo entre o Velho e o Novo Mundo pode ser resumido nas seguintes oposições: cultura-civilização, orgânico-artificial, histórico-técnico.
O Novo Mundo como Messias Como um produto histórico da evolução da Europa Ocidental, o Novo Mundo muito cedo se conscientizou de seu destino “messiânico”, em que os ideais liberal-democráticos do Iluminismo foram combinados com as idéias escatológicas de seitas protestantes radicais. Esta foi a teoria do Destino Manifesto, que se tornou o novo símbolo de crença para gerações de americanos. De acordo com esta teoria, a civilização americana suplantou todas as culturas e civilizações do Velho Mundo e em sua forma presente é obrigatória para todas as nações do planeta. Com o tempo, esta teoria confrontou diretamente não apenas as culturas do Oriente e da Ásia, mas entrou em conflito com a Europa, que pareceu aos americanos arcaica e repleta de preconceitos e tradições antiquadas. Por sua vez, o Novo Mundo se afastou da herança do Velho Mundo. Imediatamente após a II GM, o Novo Mundo se tornou líder indisputável na própria Europa e “critério de veracidade” para os outros. Isto inspirou uma onda correspondente de domínio americano e, paralelamente, o início de um movimento que buscava libertação geopolítica do controle político brutal, transoceânico, estratégico e econômico do “Irmão mais velho”.
A integração do continente eurasiano No século XX, a Europa se tornou consciente de sua identidade comum e, passo a passo, começou a se mover rumo à integração de todas suas nações em uma união capaz de garantir soberania completa, segurança e liberdade para si mesma e para todos os seus membros. A criação da União Européia foi o mais importante auxílio à restauração do status da Europa como potência mundial ao lado dos Estados Unidos da América. Esta foi a resposta do Velho Mundo ao desafio do Novo Mundo. Se considerarmos a aliança entre USA e Europa Ocidental como o vetor atlantista do desenvolvimento europeu, a integração européia sob a égide dos países continentais (Alemanha, França) pode ser chamada de eurasianismo europeu. Isto se torna ainda mais óbvio se levarmos em consideração a idéia de que a Europa vai do Oceano Atlântico aos Urais (S. de Goll) ou até Vladivostok. Em outras palavras, a integração do Velho Mundo inclui o vasto território da Federação Russa. Desse modo, o eurasianismo neste contexto pode ser definido como um projeto de integração estratégica, geopolítica e econômica do norte do continente eurasiano, considerado o berço da história européia e a matriz de suas nações. Paralela à Turquia, a Rússia (assim como os ancestrais dos europeus) está historicamente ligada à nações turcas, mongóis e caucasianas. A Rússia dá à integração européia uma dimensão eurasiana tanto no sentido geográfico quanto no simbólico (identificação do eurasianismo com o continentalismo). Durante os últimos séculos, a idéia da integração européia tem sido proposta pelas facções revolucionárias das elites européias. Em tempos antigos, tentativas similares foram feitas por Alexandre o Grande (integração do continente eurasiano) e Genghis Khan (fundador do maior império da história).
Eurásia como três grandes espaços vitais, integrados ao longo do meridiano Três cinturões eurasianos (zonas meridianas). O vetor horizontal de integração é seguido por um vetor vertical. Os planos eurasianos para o futuro supõem a divisão do planeta em quatro cinturões geográficos verticais (zonas meridianas) de Norte a Sul. Ambos os continentes americanos formarão o espaço comum orientado e controlado pelos EUA dentro dos moldes da doutrina Monroe. Esta é a zona meridiana atlântica. Em adição à zona acima, três outras estão planejadas. Elas são as seguintes: · Euro – África, com a União Européia em seu centro; · A zona Rússia-Ásia Central; · Zona do Pacífico. No interior destas zonas terá lugar a divisão regional do trabalho e a criação de áreas de desenvolvimento e corredores de crescimento. Estes cinturões (zonas meridianas) contrabalançam uns aos outros, e todos juntos contrabalançam a zona meridiana atlântica. No futuro, estes cordões podem ser a fundação sobre a qual se erguerá um mundo multipolar: o número de pólos será maior do que dois; entretanto, o número será muito menor do que o de estados-nações atuais. O modelo eurasiano propõe quatro pólos.
Grandes espaços As zonas meridianas no projeto eurasiano consistem de vários “grandes espaços” ou “impérios democráticos”. Cada um deles possui liberdade relativa e independência mas está estrategicamente integrado em uma zona meridiana correspondente. Os grandes espaços correspondem às fronteiras das civilizações e incluem vários estados-nações ou união de Estados. A União Européia e o grande espaço árabe, que integra a África do norte e trans-saariana e o Oriente Médio, formam a Euro – África. A zona Rússia-Ásia Central é formada por três grandes espaços que às vezes se imbricam. O primeiro é a Federação Russa ao lado de diversos países da CEI [Comunidade dos Estados Independentes] – membros da União Eurasiana. O segundo é o grande espaço do Islã continental (Turquia, Irã, Afeganistão, Paquistão). Os países asiáticos da CEI interseccionam esta zona. O terceiro grande espaço é o Hindustão, que é um setor civilizacional autônomo. A zona meridiana do Pacífico é determinada por um condomínio de dois grandes espaços (China e Japão) e também inclui Indonésia, Malásia, as Filipinas, e Austrália (alguns pesquisadores a associam com a zona meridiana americana). Esta região geopolítica é um grande mosaico e pode ser diferenciada por diversos critérios. A zona meridiana americana consiste nos grandes espaços da América do Norte, Central e canadense-americano.
Importância da quarta zona O modelo de mundo baseado em zonas meridianas é aceito pela maior parte dos geopolíticos americanos, que buscam a criação de uma Nova Ordem Mundial e a globalização unipolar. Entretanto, a existência do espaço meridiano da Rússia-Ásia Central é um grande obstáculo: a presença ou ausência deste cinturão muda radicalmente a figura geopolítica do mundo. Os futurólogos atlantistas dividem o mundo nas três zonas que se seguem: · Pólo americano, com a União Européia como sua periferia próxima (Euro – África como um dependente) e · as regiões asiáticas e do Pacífico como sua periferia distante. · Rússia e Ásia Central são fracionados, mas sem que se constituam numa zona meridiana independente, o mundo se torna unipolar. Esta última zona meridiana contrabalança a pressão americana e providencia às zonas européia e do pacífico a capacidade de agir como pólos civilizacionais auto-centrados. O equilíbrio multipolar real, e a independência dos cinturões meridianos, grandes espaços, e estado-nações depende do sucesso da criação de uma quarta zona. Mais ainda, não é suficiente ser pólo em modelo bipolar do mundo: o rápido progresso dos Estados Unidos da América só pode ser contrabalançado por uma sinergia das três zonas meridianas. O projeto eurasiano propõe o super projeto desta quarta zona em um nível estratégico geopolítico.
Eurasianismo como integração russo-centro asiática
Eixo Moscou-Teerã Quarta zona meridiana — integração russo-asiática. A questão central deste processo é a implementação de um eixo Moscou-Teerã. O processo interno depende do sucesso do estabelecimento de uma parceria de médio e longo prazo com o Irã. A união dos potenciais econômico, militar e político de Rússia e Irã aumentará o processo de integração da zona, tornando-a irreversível e autônoma. O eixo Moscou-Teerã será a base para uma integração posterior. Tanto Moscou quanto o Irã são potências auto-suficientes, aptas a criar seu próprio modelo organizacional para a região.
O plano eurasiano para o Afeganistão e o Paquistão O vetor de integração com o Irã tem importância vital para que a Rússia ganhe acesso a portos de águas quentes e também para a reorganização político-religiosa da Ásia Central (países asiáticos da CEI, Afeganistão e Paquistão). Uma cooperação próxima com o Irã implica na transformação da área afegão-paquistanesa em uma confederação islâmica livre, leal tanto a Moscou quanto ao Irã. A razão desta necessidade é que os Estados independentes de Afeganistão e Paquistão continuarão a ser fonte de desestabilização, ameaçando os países vizinhos. A luta geopolítica providenciará a capacidade para implementar uma nova federação central-asiática e transformar esta região complicada em uma área de cooperação e prosperidade. Eixo Moscou-Deli A cooperação russo-indiana é o segundo mais importante eixo meridiano de integração no continente eurasiano e em seus sistemas de segurança coletiva. Moscou terá um papel importante, diminuindo as tensões entre Deli e Islamabad (Kashmir). O plano eurasiano para a Índia, patrocinado por Moscou, é a criação de uma federação que refletirá a diversidade da sociedade indiana com suas numerosas minorias étnicas e religiosas, incluindo sikhs e muçulmanos.
Moscou-Ankara O principal parceiro regional no processo de integração da Ásia Central é a Turquia. A idéia eurasiana está se tornando popular por lá atualmente devido ao entrelaçamento das tendências ocidentais e orientais. A Turquia reconhece suas diferenças civilizacionais com a União Européia, seus interesses e objetivos regionais, a ameaça da globalização, e a posterior perda de soberania. É imperativo para a Turquia estabelecer uma parceria estratégica com a Federação Russa e o Irã. A Turquia só será capaz de manter suas tradições dentro do modelo multipolar de mundo. Certas facções da sociedade turca entendem esta situação — de elites políticas e socialistas a religiosas e militares. Assim, o eixo Moscou – Ankara pode se tornar uma realidade geopolítica apesar do longo período de hostilidade mútua.
Cáucuso O Cáucuso é a região mais problemática para a integração eurasiana dado seu mosaico de culturas e etnias que facilmente leva a tensões entre as nações. Esta é uma das principais armas usadas por aqueles que buscam parar o processo de integração do continente eurasiano. A região do Cáucuso é habitada por nações que pertencem a diferentes Estados e áreas civilizacionais. A região deve ser um polígono de testes de diferentes métodos de cooperação entre os povos, pois o que for bem sucedido ali poderá sê-lo ao longo do continente eurasiano. A solução eurasiana para este processo jaz não na criação de Estados étnicos ou estritamente associados a uma só nação, mas no desenvolvimento de uma federação flexível fundamentada nas diferenças étnicas e culturais no interior de um contexto estratégico comum da zona meridiana. O resultado deste plano é um sistema de um semi-eixo entre Moscou e os centros do Cáucuso (Moscou-Baku, Moscou-Erevan, Moscou-Tbilisi, Moscou-Mahachkala, Moscou-Grozni etc.) e entre os centros do Cáucusos e os aliados da Rússia no interior do projeto eurasiano (Baku-Ankara, Erevan-Teerã etc.).
O plano eurasiano para a Ásia Central A Ásia Central deve se mover rumo à integração com a Federação Russa em um bloco unido, estratégico e econômico no interior da estrutura de união eurasiana, a sucessora da CEI. A principal função dessa área específica é a reaproximação da Rússia com os países do Islã continental (Irã, Paquistão, Afeganistão). Desde o início, o setor da Ásia Central deve possuir vários vetores de integração. Um plano tornará a Federação Russa o principal parceiro (similaridades de cultura, interesses econômicos e energéticos, uma estratégia comum de sistema de segurança). O plano alternativo é colocar o foco em semelhanças étnicas e religiosas: mundos turcos, iranianos e islâmicos.
Integração eurasiana de territórios pós-soviéticos
União Eurasiana Um significado mais específico de eurasianismo, parcialmente similar às definições dos intelectuais eurasianos dos anos 1920-30, está associado ao processo de integração dos territórios pós-soviéticos. Diferentes formas similares de integração podem ser vistas na história: dos hunos e outros impérios nômades (mongóis, turcos, e indo-europeus) ao império de Gênghis Khan e seus sucessores. Uma integração mais recente foi liderada pelo império russo dos Romanov e, mais tarde, pela URSS. Hoje, a união eurasiana dá continuidade a estas tradições de pensamento de integração por meio de um modelo ideológico único que leva em consideração procedimentos democráticos, respeito aos direitos das nações, e dá atenção às características culturais, linguísticas e étnicas de todos os membros da união. Eurasianismo é a filosofia de integração do território pós-soviético em uma base democrática, não-violenta, e voluntária, sem dominação de nenhum dos grupos étnicos ou religiosos.
Astana, Dushanbe, e Bishkek como as forças principais da integração Diferentes repúblicas asiáticas da CEI ameaçam de maneira desigual o processo de integração pós-soviética. O mais ativo aliado da integração é o Cazaquistão. O presidente do Cazaquistão, Nursultan Nazarbayev, é um aliado firme da idéia eurasiana. O Quirguistão e o Tadjiquistão igualmente dão suporte ao processo de integração, apesar de sua adesão ser menos tangível em comparação com a do Cazaquistão.
Tashkent e Ashabad O Uzbequistão e especialmente o Turcomenistão se opõe ao processo de integração, buscando conquistar o máximo de resultados positivos de sua recém adquirida soberania nacional. Entretanto, em breve, devido ao crescimento dos índices de globalização, ambos os Estados enfrentarão um dilema: perder a soberania e se dissolver no mundo unificado global com a dominação dos valores liberais americanos ou preservar sua identidade religiosa e cultural no contexto de uma União Eurasiana. Em nossa opinião, uma comparação imparcial destas duas opções levará à segunda delas, continuidade natural de ambos os países e de suas histórias.
Os Estados trans-caucasianos A Armênia continua gravitando rumo à União Eurasiana e considera a Federação Russa um firme aliado e conciliador que ajuda a administrar as relações com seus vizinhos muçulmanos. É notável que Teerã prefira estabelecer uma parceria com os etnicamente próximos armênios. Este fato nos permite considerar dois semi-eixos, Moscou-Erevan e Erevan-Teerã, como pré-requisitos positivos da integração. Baku permanece neutro, mas esta situação mudará drasticamente com o contínuo movimento de Ankara rumo ao eurasianismo (que imediatamente afetará o Azerbaijão). A análise do sistema cultural do Azerbaijão mostra que este Estado é mais próximo da Federação Russa pós-soviética e das repúblicas pós-soviéticas do Cáucuso e da Ásia Central do que do religioso Irã e até mesmo da moderada Turquia. A Geórgia é o problema chave da região. O mosaico característico do Estado georgiano é a causa de sérios problemas para a construção de um novo estado nacional que é fortemente rejeitado por suas minorias étnicas: Abkhazia, Ossétia do sul, Adjaria,etc. Além disso, o Estado georgiano não tem nenhum parceiro forte na região e é forçado a buscar parceria com os EUA e a OTAN para contrabalançar a influência russa. A solução deste problema se encontra na cultura ortodoxa da Geórgia, com suas características e tradições eurasianas.
Ucrânia e Belarus — países eslavos da CEI Para o sucesso da criação da união eurasiana é suficiente a conquista do apoio do Cazaquistão e da Ucrânia. O triângulo geopolítico Moscou-Astana-Kiev é um modelo capaz de garantir a estabilidade da união eurasiana, o que torna a negociação com Kiev urgentes como nunca. A Rússia e a Ucrânia possuem muito em comum: similaridades culturais, religiosas, linguísticas e étnicas. Estes aspectos precisam ser enfatizados, pois desde o início da recente soberania da Ucrânia, a russo fobia e a desintegração têm sido promovidas. Muitos países da UE podem influenciar positivamente o governo ucraniano, pois eles estão interessados na harmonia política da Europa Oriental. A cooperação de Moscou e Kiev vai mostrar as atitudes pan-européias de ambos os países eslavos. Os fatores acima mencionados estão presentes em Belarus, onde as intenções de integração são muito mais evidentes. Entretanto, o status estratégico e econômico de Belarus é menos importante para Moscou do que aqueles de Kiev e Astana. Mais ainda, a dominação de um eixo Moscou-Minsk prejudicará a integração com a Ucrânia e o Cazaquistão, o que faz com que a integração com Belarus deva fluir sem nenhum incidente repentino — ao lado de outros vetores do processo de integração eurasiana.
Eurasianismo como Weltanschauung A última definição de eurasianismo caracteriza uma Weltanschauung específica: uma filosofia política que combina tradição, modernidade, e até elementos do pós-modernismo. Esta filosofia tem como sua prioridade uma sociedade tradicional; reconhece o imperativo da técnica e da modernização social (sem separá-la da cultural tradicional); e luta pela adaptação de seu programa ideológico à sociedade de informação e pós-industrial que é chamada de pós-modernismo. O Pós modernismo formalmente remove as contraposições entre a tradição e o modernismo, despojando-os e tornando-os iguais. O pós-modernismo eurasiano, pelo contrário, promove a aliança de tradição e modernismo como um impulso construtivo, otimista e energético orientado à criação e ao crescimento. A filosofia eurasiana não nega as realidades descobertas pelo Iluminismo: a religião, a nação, o império, a cultura etc. Ao mesmo tempo, as melhores aquisições do modernismo são usadas amplamente: os avanços tecnológicos e econômicos, as garantias sociais, a liberdade de trabalho. Os extremos se encontram, dissolvendo-se em uma teoria harmônica e original, inspirando um pensamento refrescante e soluções novas para os eternos problemas encarados pelos povos ao longo da História.
O eurasianismo é uma filosofia aberta O eurasianismo é uma filosofia aberta, não-dogmática, que pode ser enriquecida com novos conteúdos: religião, as descobertas etnológicas e sociológicas, geopolítica, economia, geografia nacional, a pesquisa política e estratégica etc. Mais ainda, a filosofia eurasiana oferece soluções originais em contextos linguísticos e culturais específicos: o eurasianismo russo não será o mesmo das versões francesa, alemã ou iraniana. No entanto, a estrutura principal da filosofia permanecerá invariável.
Os princípios do Eurasianismo Os princípios básicos do eurasianismo são os seguintes: · diferencialismo, o pluralismo de sistemas de valores contra a convencional dominação obrigatória de uma dada ideologia (a democracia liberal americana em primeiro e mais importante lugar); · tradição contra a supressão de culturas, dogmas e descobertas das sociedades tradicionais; · os direitos das nações contra os “bilhões de ouro” e a hegemonia neocolonial do “norte rico”; · as etnias como valores e sujeitos da história contra a despersonalização das nações, aprisionadas em construções sociais artificiais; · justiça social e solidariedade humana contra a exploração e humilhação do homem pelo homem.
* Texto traduzido e revisado por André Luiz.
Internacional
Rússia
Putin vence eleição por ampla margem
por AFP — publicado 19/03/2018 05h42
Com 99% da apuração completada, o presidente russo obteve 76,67% dos votos
Vladimir Putin venceu as eleições presidenciais russas com ampla vantagem no domingo 18. Aos 65 anos, ele se reelegeu para um quarto mandato que se estenderá até 2024.
Com 99,8% da apuração completada, o presidente russo obteve 76,67% dos votos. É um número maior que os 63,6% alcançados em 2012 e que as pesquisas de opinião indicavam nas últimas semanas, segundo a Comissão Eleitoral.
O chefe de Estado superou o candidato do Partido Comunista Pavel Grudinin (cerca de 12% dos votos), o ultranacionalista Vladimir Jirinovski (cerca de 6%) e a jornalista vinculada à oposição liberal Ksénia Sobtchak (1,5%).
Putin disse aos seus simpatizantes, reunidos nas imediações do Kremlin, que via na vitória "a confiança e a esperança" do povo russo. "Vamos trabalhar duro, de forma responsável e eficiente", assegurou. E prosseguiu: "Vejo o reconhecimento do fato de que muitas coisas foram realizadas em condições muito difíceis."
Durante o atual mandato de Putin, os preços do petróleo desabaram, provocando escassez de divisas, o que se somou às sanções do Ocidente pela anexação russa da Crimeia.
Putin é elogiado por ter devolvido a estabilidade ao país, após a caótica década de 1990. Seus críticos, por outro lado, afirmam que isso veio às custas das liberdades individuais.
A taxa de participação nestas eleições deve ficar em torno de 60%, segundo a Comissão Eleitoral. Caso isso se concretize, ela será menor que os 65% de 2012, apesar dos esforços feitos pelo Kremlin para mobilizar os eleitores neste pleito, cujo resultado todos davam por certo.
Mas seu principal opositor, Alexei Navalny, impedido de disputar as eleições por uma condenação judicial, acusou o Kremlin de aumentar artificialmente a mobilização, enchendo as urnas ou organizando o transporte maciço de eleitores às seções eleitorais.
"Precisam de participação. O resultado é que a vitória de Putin com mais de 70% [dos votos] se decidiu de antemão", disse Navalny à imprensa.
A ONG Golos, especializada em vigilância eleitoral, disponibilizou um mapa das fraudes em seu site na internet, no qual denunciou mais de 2,7 mil irregularidades como o preenchimento de urnas, votos múltiplos ou obstáculos ao trabalho dos observadores.
"Está claro que as eleições não são justas", disse o comunista Grudinin, citado pela agência de notícias Interfax.
A presidente da Comissão Eleitoral, Ella Pamfilova, considerou, no entanto, que as irregularidades comprovadas foram "relativamente baixas" e acrescentou que a votação foi transparente.
As autoridades fizeram uma campanha maciça de informação e incitação ao voto, facilitando a participação fora das circunscrições de residência, mas também, segundo a imprensa, pressionando funcionários públicos e estudantes a votar.
Mesmo após independência, a paz no Kosovo ainda é ameaçada pela divisão
O país ainda carrega cicatrizes e se recupera da destruição deixada pelas batalhas. Quase uma década depois de o Kosovo ter se declarado independente da Sérvia, o território permanece mais dividido do que em paz
“É um pedaço do paraíso na Terra. Quando você está aqui, sente isso”, disse o monge.
Usando um longo manto preto e passando a mão pela longa barba escura, suas palavras poderiam parecer uma frase simples, um homem santo falando sobre um lugar sagrado.
Mas nada é tão simples aqui.
Sua casa, o Monastério de Banjska, fica acima de uma vila perto de Mitrovica, no Kosovo – uma cidade dividida em um país dividido que ainda carrega as cicatrizes e se recupera da destruição deixada por guerras que começaram há mais de 600 anos.
Construído entre 1313 e 1317 pelo rei sérvio Estêvão Milutino, o monastério foi o local onde ficou enterrado até a Batalha do Kosovo em 1389.
A luta entre os sérvios cristãos e os turcos otomanos é altamente mitificada, e há relatos históricos contraditórios. O que se sabe é que o líder sérvio, o príncipe Lázaro da Sérvia, foi morto. E sua morte se tornou um símbolo do sofrimento e resistência que ainda sobrevive.
De acordo com a mitologia, na noite anterior à batalha, Lázaro recebeu a visita de um santo na forma de falcão que trazia uma mensagem da Virgem Maria.
Ele poderia ganhar a batalha e ter um reino na Terra, ou perder a batalha e encontrar um reino no céu. Ele escolheu perder.
Em 28 de junho de 1989, no 600º aniversário da batalha, Slobodan Milosevic chegou de helicóptero ao local e reformulou a escolha feita por Lázaro. Era o tempo, disse ele, dos sérvios terem “o paraíso na Terra”.
Foi um chamado à guerra, e o que ocorreu em seguida foi uma campanha de limpeza étnica contra os albaneses do Kosovo, que só acabou após um bombardeiro da Otan liderado pelos Estados Unidos, que durou 78 dias, em 1999.
Paz ameaçada
Mas após quase duas décadas do bombardeio que ajudou a pôr fim à violência, e uma década depois de o Kosovo ter se declarado independente da Sérvia, o território permanece mais dividido do que em paz.
Aqui em Mitrovica, no norte do país, a etnia sérvia é dominante; apenas recentemente os policiais começaram a usar os uniformes oficiais do país.
Muitas pessoas não se veem como parte do Kosovo como ele é atualmente. Querem ser parte da Sérvia, mas se sentem como peões em um jogo maior, no qual a Sérvia quer ser membro da União Europeia, e esperam ser abandonados por Belgrado se esse dia chegar.
Esta foi minha primeira viagem ao Kosovo em meu novo posto cobrindo a Europa Central e Oriental, uma viagem rápida para cobrir uma visita precipitada do presidente sérvio, Aleksandar Vucic, que veio conversar com uma comunidade que está no limite após o assassinato de um proeminente político da etnia sérvia em Mitrovica.
Em uma reunião na prefeitura, Vucic foi recebido por moradores furiosos e descrentes que perguntaram quem iria protegê-los, dizendo que precisavam de armas.
Eles se reuniram em um salão lotado, em uma cidade cheia de lembretes diários do quão perto seus antigos inimigos estão e de quanto suas vidas estão distanciadas.
Todos os dias, uma chamada à oração ecoa em uma mesquita no lado sul de uma ponte que se estende sobre o Rio Ibar, que corta a cidade. Os da etnia sérvia do outro lado da ponte conseguem ouvir o canto do muezim enquanto passam por uma estátua apenas recentemente erguida – dedicada ao príncipe Lázaro. Ele olha sobre a ponte, que é guardada por pacificadores internacionais. Os Carabinieri italianos cumprem essa função atualmente.
Eles são apenas uma das dezenas de organizações de fora que tentam garantir que a paz não se perca. A mais visível delas é a KFOR, força de segurança liderada pela Otan.
Divisões
É fácil dizer quando se está na área da etnia sérvia mesmo antes de ver qualquer tropa internacional. Muitos dos carros não têm placas ou têm placas sérvias, que são consideradas ilegais pelo governo de Pristina.
As crianças frequentam escolas separadas. Os homens trabalham em indústrias separadas. As famílias comem em restaurantes diferentes. O governo do Kosovo, que é liderado pela etnia albanesa, não reconhece os diplomas dos que se formaram na Universidade de Mitrovica. Até os serviços de telefonia celular são separados, com as áreas sérvias inexplicavelmente geralmente conectadas a um serviço com base em Mônaco.
Dadas todas essas divisões, é interessante ver – e talvez seja um sinal positivo – que o assassinato do político local, Oliver Ivanovic, não gerou acusações contra a comunidade de etnia albanesa do outro lado da ponte de imediato.
Ao invés disso, muitos especularam que a luta de Ivanovic contra as redes criminosas na comunidade de etnia sérvia foi o motivo seu assassinato.
“A sensação de medo dessas pessoas é inacreditável”, disse Ivanovic não muito antes de sua morte.
“Quero deixar claro: essas pessoas não têm medo dos albaneses, mas de sérvios, homens poderosos na comunidade, criminosos. A polícia está vendo e não faz nada, e os moradores sentem que não estão seguros, mesmo que sejam nossa gente, sérvios, na polícia do norte do Kosovo”, disse ele.
O monge, que atende apenas por Georgije, seu nome sacerdotal, concordou. “Há muitas pessoas vivendo em pecado”, disse ele.
Domínio
Mas sua receita para a mudança parece ignorar as razões da última guerra, a causa de tanto derramamento de sangue, e a carnificina que provavelmente ocorreria para retomá-la.
Os sérvios em Kosovo estavam perdidos, disse ele, culpando a separação entre Igreja e Estado. A única forma de restabelecer o equilíbrio natural seria ter um governo baseado na Igreja Ortodoxa Sérvia – uma solução que é um anátema para a população muçulmana do Kosovo.
“Precisamos da união entre o Estado, a Igreja e o povo”, disse ele, citando os princípios adotados pelo antigo rei que esteve enterrado no monastério. “Não dá para ter um sem o outro.”
Durante sua história de séculos, o monastério que ele chama de casa foi devastado pelo fogo, abandonado e derrubado. Sob o regime otomano e até o fim da Primeira Guerra Mundial, foi uma mesquita. Passou por uma restauração que começou em 1990, quando foi declarado Monumento de Excepcional Importância pelo governo sérvio. Os sérvios sempre voltam.
Essa longa história moldou a visão do monge e de muitos que ainda vivem em Mitrovica. Como descendente de Milutino e de Lázaro, ele deu voz ao sentimento sérvio de perseguição.
“Primeiro, fomos forçados a viver sob o domínio turco. Agora, são os albaneses e os americanos.”
Mas os sérvios têm memória, afirmou. E ele tinha esperanças de que iriam restabelecer seu domínio medieval sobre o Kosovo mais uma vez.
Fonte: Gazeta do Povo - 18/02/2018
Desenhando, para até o pessoal do complexo de vira-latas poder entender
27 de abril de 2015 | 12:52 Autor: Fernando Brito
A ilustração que retirei do Facebook da comunidade Planeta Fascinante é daquelas que quase dispensam legenda.
Ainda assim, é só olhar quem são os países que somam território, população e riqueza econômica.
Os cinco que ocupam a área de intersecção dos três conjuntos.
Deveria ser o que bastasse para entender que o Brasil é um país com destino próprio, não o de ser um satélite.
Como para ver onde estão nossas sinergias.
Repare, não disse ideologias.
Disse oportunidades.
Embora assim tão obvio, a elite brasileira não consegue enxergar.
Tem na cabeça que o Brasil deveria ser uma sub-Miami.
A burrice é uma coisa muito difícil de combater, porque prescinde de argumentos e sustenta verdades que ouviu de alguém e as repete.
Quem sabe assim, desenhando?
Os verdadeiros donos do mundo
A economia mundial vive a maior crise em 80 anos. Ela destruiu milhões de empregos e impede o crescimento da maioria dos países. Ao mesmo tempo, o número de bilionários dobrou, e as fortunas deles também. Entenda por que a desigualdade social explodiu - e os efeitos disso sobre a sua vida.
As 67 pessoas mais ricas do mundo têm US$ 1,72 trilhão. Tanto dinheiro quanto os... 3,5 bilhões mais pobres. Metade de toda a humanidade.
Este ano, um grupo de 130 pessoas se reuniu em Copenhague, capital da Dinamarca. Discutiram assuntos como economia global, mudanças climáticas, guerras. Fizeram previsões, debateram, traçaram estratégias. Parecia uma assembleia da ONU. Mas era um encontro do Grupo de Bilderberg: organização criada em 1954 para reunir as pessoas mais poderosas do planeta. Seu encontro anual, que não é aberto a ninguém da imprensa, reúne multibilionários e chefes de Estado e de Exércitos (este ano, os destaques foram o líder supremo da OTAN, aliança militar presente em 28 países, e o diretor-geral da NSA, a superagência de espionagem americana). "Estamos falando de uma rede global, mais poderosa do que qualquer país, e determinada a controlar a humanidade", diz o russo Daniel Estulin, autor de um livro sobre o grupo. Ele pode estar exagerando um pouco. Mas é fato que os ultrarricos nunca tiveram tanta força. A economia mundial patina e não consegue se recuperar da megacrise de 2008, a maior dos últimos 80 anos. Ela começou com quebras de grandes bancos nos EUA, que deixaram um rombo estimado em US$ 2,7 trilhões, e se espalhou pelo planeta, gerando grandes ondas de desemprego e recessão - da qual as principais economias do mundo ainda não se recuperaram. Mas mesmo assim, em plena tempestade, o número de bilionários dobrou. Agora um pequeno grupo, com as 67 pessoas mais ricas do mundo, tem tanto dinheiro quanto os 3,5 bilhões de humanos mais pobres. É como se, financeiramente, metade do planeta coubesse dentro de um ônibus. A desigualdade de renda explodiu, e está se aproximando dos níveis que antecederam a Primeira Guerra Mundial. E isso tende a ser um problema para quase todo mundo.
Mas antes: como chegamos a esse ponto? Afinal, se o mundo está em crise, todos perdem, certo? Mais ou menos. Na verdade, as crises têm o poder de concentrar renda, deixar os ricos mais ricos. E é fácil entender o porquê. Quando as coisas apertam, pessoas e empresas são obrigadas a se desfazer do seu patrimônio. Vendem imóveis pela metade do preço, liquidam ações por menos do que valem e, claro, saem perdendo. Quem ganha são uns poucos - que têm dinheiro para comprar tudo isso. "Para cada novo milionário, há muito mais gente que perde dinheiro. Em geral, quem mais sofre são os pobres e a classe média", diz Rodolfo Olivo, professor de finanças da USP. Os mais ricos compraram ações e empresas pagando pouco, logo no estouro da crise, e ganharam com isso. De 2009 para cá o índice Dow Jones, que mede as principais ações das bolsas americanas, subiu 149%. Ao mesmo tempo em que aumentava a concentração de renda, a crise emperrou as economias e instigou movimentos como o Occupy Wall Street - que começou como um protesto de 100 mil pessoas no centro financeiro de Nova York e chegou a 1.500 cidades pelo mundo. Tudo isso teve uma consequência inédita: fez um livro de economia virar best -seller. O Capital no Século XXI, escrito pelo economista francês Thomas Piketty, é um catatau de quase 700 páginas, que analisa as economias de 20 países ao longo de mais de um século. É denso, complexo, difícil de ler. Mas se tornou número 1 na Europa e nos EUA, com centenas de milhares de cópias vendidas. No Brasil, foi lançado em novembro e imediatamente alcançou o segundo lugar (só perdendo para a biografia do líder religioso Edir Macedo). Piketty tem chamado a atenção - e causado furor - porque demonstrou, com estatísticas, que a desigualdade social está aumentando. E apresentou uma explicação para esse fenômeno. O contraste entre ricos e pobres não surge do nada. Ele vem de uma força elementar: a diferença entre o capital e o trabalho. O capital (dinheiro, imóveis, fábricas, ações, bens) pode ser investido e gerar mais capital. Já o trabalho não tem esse poder multiplicador. E aí, diz Piketty, r > g. Essa fórmula, que foi inventada por ele, é bem simples. O "r" é o ganho médio que o capital consegue obter em um ano, por meio de investimentos. Já o "g" representa a taxa de crescimento da economia. Ou seja: se r é maior que g, quem tem capital para investir sempre ganha mais do que a economia como um todo. E fica com uma fatia cada vez maior do bolo. Já quem trabalha e recebe salário, ou seja a maioria das pessoas, fica com menos. E como dizia o refrão daquela música, "o de cima sobe e o de baixo desce". Nem sempre foi assim. Entre as décadas de 1950 e 1970, o processo foi inverso. O crescimento da economia era maior que o ganho dos investimentos (ou seja, g > r). O mercado financeiro lucrava menos do que a `economia real¿, embalada pela reconstrução da Europa e a explosão de prosperidade nos EUA. A desigualdade diminuiu. Mas a onda virou, e a distância entre ricos e pobres voltou a crescer. No final dos anos 70, os presidentes das 350 maiores companhias do mundo ganhavam, em média, 30 a 40 vezes mais que os funcionários de base. Hoje, a diferença de salário entre o presidente e o peão passa de 300 vezes. Nos Estados Unidos, o salário médio dos trabalhadores encolheu de US$ 4 mil para US$ 2.750 (em valores reais, descontando a inflação do período) entre 1978 e 2010. Já a remuneração do 1% mais rico disparou: foi de US$ 25 mil para US$ 83 mil. No Brasil, a concentração de renda caiu nos últimos 20 anos. Mas ainda é brutal. Somos o 13º país mais desigual do mundo (veja quadro na página 40), só perdendo para nações muito pobres, como Botsuana, Namíbia e Haiti. "Quanto maior é a desigualdade, mais altas são as taxas de homicídio, de uso de drogas, mortalidade infantil, doenças psiquiátricas e até de obesidade", diz Richard Wilkinson, diretor da ONG britânica The Equality Trust. Reduzir a diferença entre ricos e pobres não é apenas uma questão humanitária ou ideológica. É importante para a saúde da própria economia. E quem diz isso não são pregadores esquerdistas: é o Fundo Monetário Internacional, que publicou um estudo mostrando como a desigualdade extrema tende a gerar crises, e o World Economic Forum - que reúne 700 líderes econômicos globais e este ano elegeu a desigualdade como o grande problema do mundo atual. Até o papa Francisco andou palpitando a respeito: para ele, a desigualdade "provocará uma explosão da violência" no mundo se não for contida.
O DINHEIRO NO PODER
Os donos do mundo aproveitaram a crise e exploraram a diferença entre capital e trabalho para aumentar suas fortunas. Mas também podem recorrer a outros meios, como a política. A história está recheada de casos de multibilionários que usaram suas fortunas para moldar o destino da humanidade - e ficaram ainda mais ricos fazendo isso. No século 19, o banqueiro Nathan Rothschild foi o grande instigador da derrota de Napoleão na batalha de Waterloo. Ele comprou a maior parte dos títulos emitidos pelo Exército inglês para financiar a guerra. Cheio de dinheiro, e portanto de armas, o Exército foi ao front e venceu. Rothschild foi a primeira pessoa na Inglaterra a ficar sabendo. Sem avisar ninguém, saiu vendendo seus títulos. Os outros investidores acharam que a Inglaterra tinha perdido a guerra, e também venderam os titulos que possuíam. Isso derrubou os preços deles. Rothschild aproveitou para recomprar tudo, pagando baratíssimo. No dia seguinte, quando o resto do país foi informado da vitória, o valor dos papéis disparou. E Rothschild multiplicou sua fortuna em 20 vezes. Ela chegou a US$ 350 bilhões, em valores atuais. Dá mais de quatro Bill Gates. Hoje, a influência dos überricos na política é mais sutil, mas igualmente forte. Um bom exemplo é o Tea Party, que surgiu nos Estados Unidos em 2009 - à primeira vista, como movimento popular. De repente, milhares de americanos estavam nas ruas para protestar contra coisas que os incomodavam. Só que ninguém estava reclamando da falta de saúde ou educação, ou de 20 centavos a mais na passagem do ônibus. As reivindicações eram mais ao gosto de empresários e banqueiros: redução de impostos, liberação nas emissões de CO2 (que, segundo o Tea Party, não é o responsável pelo aquecimento global) e fim do sistema de saúde gratuito que Barack Obama tentava implantar nos EUA. Com inclinações tão ostensivas, era difícil que a máscara não caísse. A imprensa americana logo descobriu que, na verdade, o Tea Party tinha sido criado e era financiado pelos irmãos David e Charles Koch - que estão entre as dez pessoas mais ricas do mundo. Só neste ano, eles já compraram 43.900 espaços publicitários em TVs e rádios dos Estados Unidos para difundir mensagens políticas e apoiar determinados candidatos. Quando foram flagrados como criadores do movimento, os irmãos Koch não se abalaram. Admitiram tudo, e disseram que seu objetivo é melhorar a "qualidade de vida" da sociedade. No Brasil, são notórios os casos de empresas ou de milionários que dão dinheiro para financiar partidos políticos: são as controversas doações de campanha. Nas últimas eleições, elas ultrapassaram a marca de R$ 1 bilhão, segundo o TSE. As dez empresas que mais doaram (JBS, Bradesco, Itaú, OAS, Andrade Gutierrez, Odebrecht, UTC Engenharia, Queiroz Galvão, Vale e Ambev) financiaram 70% de todos os deputados federais eleitos - 360 de 513, segundo levantamento do jornal O Estado de S. Paulo. As doações são permitidas por lei. Mas podem causar distorções. Imagine que você foi eleito deputado. Certo dia, sua secretária avisa que há duas pessoas esperando você. Uma é um cidadão qualquer. A outra é um empresário que doou alguns milhões para a sua campanha (e de cuja ajuda você vai precisar na próxima eleição). "Quem você se sentiria mais pressionado a receber?", pergunta Claudio Abramo, diretor da ONG Transparência Brasil. "Os grandes doadores exercem uma pressão muito maior sobre os políticos." Uma possível saída seria limitar ou proibir as doações privadas e financiar as campanhas com dinheiro público, como já acontece em países como Suécia e França. Isso ajudaria a conter a influência dos empresários. Mas a medida também tem seu lado polêmico, pois consumiria recursos públicos. O valor do financiamento poderia ser fixado por lei, obrigando as campanhas a gastar menos do que hoje. Isso enfrentaria grande resistência da classe política, e o financiamento público não é uma panaceia - pois candidatos mal-intencionados sempre poderiam receber dinheiro por fora, por meio de caixa 2. De toda forma, quem tem força econômica nem sempre precisa manipular os políticos. Às vezes, pode obrigá-los a fazer as coisas. Como o megainvestidor George Soros, 24º. homem mais rico do mundo. Ele fez fortuna comprando e vendendo ações e títulos do mercado financeiro - doa a quem doer. Sua maior demonstração de poder foi a quebra do Banco da Inglaterra. O banco, que foi fundado no século 17, é o equivalente inglês ao nosso Banco Central. Controla a economia e a moeda. Em 1992, a Inglaterra tinha feito um pacto com outros países da Europa. Ela se comprometeu a manter sua moeda, a libra esterlina, numa cotação igual ou superior a 2,77 marcos alemães (o euro ainda não existia). Se o valor caísse abaixo disso, o Banco da Inglaterra era obrigado a intervir. O objetivo era reduzir as oscilações econômicas na Europa. Mas Soros viu nisso uma grande oportunidade para lucrar. Sem chamar a atenção, ele foi pegando empréstimos e comprando libras esterlinas. Acumulou o equivalente a US$ 10 bilhões. Aí, no dia 16 de setembro de 1992, vendeu todas. Jogou tudo de uma vez no mercado. Como havia excesso de libras, a cotação delas despencou. Em pânico, o Banco da Inglaterra tentou aumentar os juros e comprar libras para defender a moeda. Mas Soros era mais forte. O governo inglês foi obrigado a abaixar a cabeça e aceitar a desvalorização da libra. No dia seguinte Soros recomprou, pagando menos, tudo o que tinha vendido - e ganhou US$ 1 bilhão com isso. O episódio ficou conhecido como "Quarta-feira Negra". "Os grandes acertos de Soros foram saber quem iria perder", escreve o historiador Niall Ferguson em A Ascensão do Dinheiro - A História Financeira do Mundo (Editora Planeta). Naquela ocasião, o perdedor foi a Inglaterra. Mas não foi o único caso do tipo. Esse jogo, em que grandes investidores forçam os países a desvalorizar suas moedas, começou na Tailândia, se espalhou por vários países da Ásia, chegou à Rússia e veio parar no Brasil. Em 1999, depois de sofrer um ataque similar, o Banco Central foi obrigado a abandonar o sistema de bandas cambiais, que estipulava uma variação máxima para a cotação do real. E aí está outro problema da superconcentração de renda: ela permite que megainvestidores, como Soros, tenham força para mexer com a moeda de um país inteiro. Hoje, estima-se que haja mais de US$ 600 trilhões aplicados no mercado financeiro, dez vezes mais do que na chamada "economia real". O dinheiro que fica dentro do mercado, e não é investido em empresas e projetos, só serve para fabricar mais dinheiro. Não movimenta a economia. "Não contribui para a inovação, a capacidade empresarial, a criação de empregos", diz o economista Evilásio Salvador, professor da Universidade de Brasília.
A UNIÃO FAZ A FORÇA
Os ultrarricos nem sempre exercem seu poder na política, ou no mercado financeiro. Eles também influem sobre as coisas que você compra. Os produtos e serviços são fornecidos por um número cada vez menor de empresas - porque elas estão se juntando umas às outras. Entre 2002 e 2005, o Brasil teve uma média de 384 fusões e aquisições por ano, segundo estudo da consultoria Price Waterhouse Coopers (PwC). De 2006 a 2009, essa média subiu para 646. De 2010 a 2013, chegou a 783. A concentração empresarial está acontecendo no mundo inteiro, em todos os setores da economia. Por exemplo: no final dos anos 50, a França tinha 20 montadoras de automóveis. Hoje, apenas duas (Renault e Peugeot-Citroën), que foram absorvendo as demais. Na Itália, eram 19. Hoje, só uma (Fiat). Pesquisadores do Instituto Federal de Tecnologia da Suíça, em Zurique, estudaram as 43 mil maiores empresas do mundo - e mapearam todas as relações entre elas. Descobriram que um grupo muito pequeno manda numa parte enorme da economia global. "1% das empresas controla 40% de toda a rede", diz James Glattfelder, um dos autores do estudo. A concentração empresarial não é necessariamente ruim, mas pode ser. Imagine se só existisse uma marca de creme dental, por exemplo. Ela poderia cobrar bem caro e você seria obrigado a pagar, porque precisa escovar os dentes. Na prática, isso não tem acontecido. O mercado brasileiro de cerveja, por exemplo, é dominado pela AmBev (que tem 67,5%). Ela surgiu da fusão entre Brahma e Antarctica, as duas maiores cervejarias do País. Mas desde que foi criada, em 1999, os reajustes no preço da cerveja estiveram próximos da inflação, sem aumentos abusivos. "Hoje a concorrência é muito maior do que no passado", diz o economista Rogério Gollo, especialista em fusões e aquisições da PwC. Com os carros, aconteceu a mesma coisa. Mesmo havendo menos fabricantes, os preços não subiram. A concentração empresarial não está doendo no seu bolso, pelo menos não ainda. Mas uma coisa está.
EFEITO MATEUS
Os impostos. Quando pensamos neles, costumamos pensar no governo: o dinheiro que ele arrecada e os serviços públicos, como saúde e educação, que fornece em troca. O que pouca gente sabe é que, no Brasil, os ricos pagam proporcionalmente menos impostos do que o resto da sociedade. Soa incrível, mas é verdade. Um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostra o que acontece. Uma pessoa que ganha dois salários mínimos por mês gasta 53,9% da sua renda com impostos, que estão embutidos nos produtos que ela compra. Tem de trabalhar 197 dias por ano só para pagar impostos. Já alguém que recebe 30 salários mínimos paga apenas 29% - e trabalha 106 dias, quase a metade do tempo, para sustentar o governo (veja quadro na página ao lado). Isso acontece porque, ao contrário do que acontece em países desenvolvidos, os impostos brasileiros estão mais concentrados nos produtos que as pessoas compram, e não no dinheiro que elas ganham. E essa característica é uma máquina de produzir desigualdade: porque os impostos tomam mais dinheiro daqueles que menos têm. "Isso onera os mais pobres, tornando-os mais pobres ainda", diz Evilásio Salvador, da Universidade de Brasília. É o que os economistas chamam de Efeito Mateus (uma referência à passagem bíblica Mateus 25, 14-30: "Porque àquele que tem lhe será dado, e terá em abundância; mas ao que não tem, até aquilo que tem lhe será tirado"). Inverter essa lógica é difícil - afinal, os mais ricos têm poder para pressionar os políticos. Mas até alguns deles se dizem dispostos a mudar. O megainvestidor Warren Buffet, terceiro homem mais rico do mundo, sugeriu um plano ao presidente dos EUA. A proposta, que ficou conhecida como "The Buffett Rule" (Regra Buffett), criava um imposto de renda de pelo menos 30% sobre quem ganha mais de US$ 1 milhão por ano. Isso só afetaria 0,3% das pessoas. Mas arrecadaria US$ 36 bilhões. É um oceano de dinheiro (mais que todo o orçamento do Ministério da Educação brasileiro). A proposta foi à votação no Congresso, e perdeu. Segundo uma pesquisa da CNN, 72% dos americanos eram a favor dela. Se nada mudar, a desigualdade no mundo tende a continuar crescendo (pois r > g, lembra?). É difícil prever as consequências disso. Mas uma delas pode ser a radicalização política. Um estudo feito por três universidades americanas (Columbia, Houston e Princeton) constatou que, quanto maior a desigualdade econômica num país, mais forte tende a ser a divisão entre os seus grupos de esquerda e de direita. E a história sugere que a superconcentração de recursos pode acabar em algum tipo de tumulto. Já aconteceu. Houve um país que passou por um processo muito forte, e muito acelerado, de concentração de renda. Em apenas cinco anos, a fatia do bolo pertencente ao 1% mais rico cresceu 50%. A renda das demais pessoas caiu a ponto de prejudicar sua alimentação - e aumentar a mortalidade infantil em 16% em determinadas regiões do país. Seu líder fazia discursos cada vez mais inflamados, nos quais se dizia "inimigo do capitalismo". Essa nação era a Alemanha. Seu líder, Adolf Hitler. A consequência, a Segunda Guerra Mundial.
Os 67 ultrarricos(1) Bill Gates US$ 80,9 BI - Microsoft - EUA (2) Carlos Slim Helu & família US$ 78,7 BI - América Móvil - México (3) Warren Buffett US$ 68,4 BI - Berkshire Hathaway (investimentos) - EUA (4) Amancio Ortega US$ 58,1 BI - Zara - Espanha (5) Larry Ellison US$ 48,8 BI - Oracle (software) - EUA (6) Charles Koch US$ 41,9 BI - Koch Industries (energia) - EUA (7) David Koch US$ 41,9 BI - Koch Industries - EUA (8) Christy Walton & família US$ 37,9 BI - Walmart - EUA (9) Jim Walton US$ 36,6 BI - Walmart - EUA (10) Mark Zuckerberg US$ 35,5 BI - Facebook - EUA (11) Alice Walton US$ 35,1 BI - Walmart - EUA (12) S. Robson Walton US$ 35,1 BI - Walmart - EUA (13) Michael Bloomberg US$ 34,5 BI - Bloomberg (mídia) - EUA (14) Liliane Bettencourt & família US$ 34.2 BI - L¿Oreal - França (15) Sheldon Adelson US$ 32,1 BI - dono de cassinos - EUA (16) Li Ka-shing US$ 31,3 BI - portos e empresas de plástico - Hong Kong (17) Stefan Persson US$ 30,4 BI - H&M (roupas) - Suécia (18) Bernard Arnault & família US$ 30,2 BI - LVMH (Louis Vuitton) - França (19) Larry Page US$ 29,9 BI - Google - EUA (20) Sergey Brin US$ 29,5 BI - Google - EUA (21) Jeff Bezos US$ 26,9 BI - Amazon - EUA (22) Carl Icahn US$ 25,5 BI - investidor - EUA (23) Michele Ferrero & família US$ 25 BI - Grupo Ferrero (chocolates) - Itália (24) George Soros US$ 24 BI - INVESTIDOR - EUA (25) David Thomson & família US$ 24 BI - Thomson Reuters (mídia) - Canadá (26) Forrest Mars Jr. US$ 23,1 BI - Mars INC. (CHOCOLATES) - EUA (27) Jacqueline Mars US$ 23,1 BI - Mars Inc. - EUA (28) John Mars US$ 23,1 BI - Mars Inc. - EUA (29) Aliko Dangote US$ 23 BI - Dangote Group (açúcar) - Nigéria (30) Lee Shau Kee US$ 22,4 BI - dono de hotéis e imóveis - Hong Kong (31) Steve Ballmer US$ 22,3 BI - Microsoft - EUA (32) Mukesh Ambani US$ 21,8 BI - Reliance Industries (energia e telecom) - Índia (33) Al-Waleed Bin Talal Alsaud US$ 21,5 BI - família real - Arábia Saudita (34) Jorge Paulo Lemann US$ 21,5 BI - 3G Capital (controladora da ambev) - Brasil (35) Phil Knight US$ 21,4 BI - Nike - EUA (36) Michael Dell US$ 21,1 BI - Dell - EUA (37) Jack Ma US$ 21 BI - Alibaba Group (comércio eletrônico) - China (38) Len Blavatnik US$ 19,7 BI - investidor - EUA (39) Dilip Shanghvi US$ 17,9 BI - Sun Pharmaceutical Industries - Índia (40) Leonardo Del Vecchio US$ 17,8 BI - Luxottica (óculos) - Itália (41) Alisher Usmanov US$ 17,5 BI - USM Holdings (mineração) - Rússia (42) Tadashi Yanai & família US$ 17,1 BI - Fast Retailing (varejo) - Japão (43) Paul Allen US$ 17 BI - Microsoft - EUA (44) Masayoshi Son US$ 16,8 BI - Softbank - Japão (45) Michael Otto & família US$ 16,6 BI - Otto GmbH & Co (varejo) - Alemanha (46) Laurene Powell Jobs & família US$ 16,6 BI - Apple, Disney - EUA (47) Theo Albrecht Jr & família US$ 16,5 BI - Trader Joe¿s (varejo) - Alemanha (48) Charles Ergen US$ 16,2 BI - Dish Network (TV por assinatura) - EUA (49) Robin Li US$ 16,1 BI - Baidu (internet) - China (50) Gina Rinehart US$ 15,9 BI - Hancock Prospecting (minérios) - Austrália (51) Anne Cox Chambers US$ 15,8 BI - Cox Enterprises (mídia) - EUA (52) Mikhail Fridman US$ 15,7 BI - Alfa-Bank - Rússia (53) Joseph Safra US$ 15,5 BI - Banco Safra - Brasil (54) Viktor Vekselberg US$ 15,4 BI - Renova Group (energia e telecom) - Rússia (55) Susanne Klatten US$ 15,3 BI - BMW - Alemanha (56) Donald Bren US$ 15,3 BI - Irvine Company (imóveis) - EUA (57) Ray Dalio US$ 15,2 BI - Bridgewater Associates (investimentos) - EUA (58) Luis Carlos Sarmiento US$ 15,1 BI - Grupo Aval (banco) - Colômbia (59) Pallonji Mistry US$ 15,1 BI - Shapoorji Pallonji Group (construção) - Índia/Irlanda (60) Azim Premji US$ 15,1 BI - Wipro (tecnologia) - Índia (61) German Larrea Mota Velasco & família US$ 14,8 BI - Grupo Mexico (mineração) - México (62) Dieter Schwarz US$ 14,7 BI - Schwarz Group (varejo) - Alemanha (63) Ma Huateng US$ 14,7 BI - Tencent (internet) - China (64) Harold Hamm US$ 14,6 BI - Continental Resources (energia) - EUA (65) Lui Che Woo US$ 14,5 BI - Galaxy Entertainment (hotéis e casinos) - Hong Kong (66) Thomas & Raymond Kwok & família US$ 14,5 BI - Sun Hung Kai (imóveis)Properties - Hong Kong (67) Lakshmi Mittal US$ 14,5 BI - ArcelorMittal (mineração e aço) - Índia
O que é o Estado Islâmico?
03/09/14 02:10
Militantes de uma organização terrorista conhecida anteriormente como Estado Islâmico no Iraque e no Levante declararam, em junho deste ano, um “califado islâmico” no Oriente Médio –chamado agora apenas de Estado Islâmico. Desde então, esses guerreiros se tornaram um dos assuntos mais importantes do noticiário internacional.
Eles foram assunto de uma longa reportagem na Folha (clique aqui para ler) nesta semana. O que não quer dizer que você ainda não tenha dúvidas. O Mundialíssimo blog estreia, hoje, com a lista das perguntas que você talvez tenha vergonha de fazer. Por exemplo:
O que é o Estado Islâmico? É uma organização terrorista que declarou, em 30 de junho deste ano, o controle de um território estratégico entre a Síria e o Iraque. Seus membros estabeleceram, ali, um califado islâmico e têm disputado com os governos regionais.
Mas eles surgiram de repente? Não. Esse tipo de movimento extremista foi fomentado ali pela invasão americana de 2003 e pelo progressivo fracasso do governo iraquiano. O projeto faz parte da tendência que inclui, também, a Al Qaeda e outras organizações. Até junho, esses terroristas se chamavam de Estado Islâmico no Iraque e no Levante, abreviado em português EIIL e, em inglês, Isil.
O que é um califado islâmico? É um modelo político surgido no século 7, na península Arábica, a partir da liderança de Maomé, o profeta do islamismo. “Califado” significava “sucessão”. No caso, os líderes muçulmanos que vieram após a morte do profeta.
Profeta? O islamismo surgiu no século 7 a partir da revelação de Maomé, que organizou essa religião e unificou tribos em torno da ideia central de que só há um único Deus, comum ao cristianismo e ao judaísmo. O islã é a revelação feita aos árabes, na península Arábica.
Todo califado é terrorista? Não. Nem todo muçulmano, aliás. As práticas terroristas são específicas de uma interpretação radical do islã que não é mainstream nem foi a regra durante os séculos de islamismo. O fundamentalismo é, na verdade, um fenômeno contemporâneo, reagindo ao secularismo contemporâneo, segundo estudiosos como Karen Armstrong (autora de “Em Nome de Deus”).
Eu deveria me preocupar? Sim. Mas analistas não esperam que o Estado Islâmico se mantenha de fato como um Estado, controlando fronteiras e articulando governos. Os terroristas estão bem armados, mas enfrentam a inimizade de toda a região. Os Estados Unidos têm bombardeado posições do califado, também. Veja abaixo alguns de seus inimigos:
Quem é o líder do Estado Islâmico? Como no modelo do califado histórico, o Estado Islâmico tem um califa –um líder político e religioso. Neste caso, é Abu Bakr al-Baghdadi:
Todos os muçulmanos seguem esse califa? Não. Essa seria a ideia de um califado, como foi o projeto de Maomé e de seus seguidores no início do islamismo. Mas Abu Bakr al-Baghdadi é seguido por uma pequena parcela dos muçulmanos, e enfrenta oposição de todos os Estados islâmicos. Ele não representa o islã.
Pequena parcela, quanto? Os EUA estimam entre 7.000 e 12 mil combatentes. O Estado Islâmico diz que são 50 mil na Síria e 30 mil no Iraque. É difícil ter certeza sobre esse número, já que a região vive em convulsão política.
De onde vem o dinheiro do Estado Islâmico? Essa organização terrorista controla poços e refinarias de petróleo na região, lucrando com seu contrabando. É cobrado também imposto da população. A renda inclui, por fim, o resgate cobrado por reféns e a pilhagem de bancos.
Como posso saber mais sobre esse assunto em uma hora? Assista ao documentário da revista “Vice” sobre o Estado Islâmico. O repórter teve acesso à organização e esteve na capital do califado, Raqqa. O vídeo está abaixo:
Imperialismo francês invadiu Mali há dois anos para manter controle sobre ex-colônia.
O país africano continua sob intervenção francesa com a velha desculpa de “combate ao terrorismo”.
A República do Mali localiza-se na África Ocidental, e uma boa parte sua fica na região que se chama de Sahel. País com fronteiras artificiais, como a imensa maioria dos países africanos, o Mali tem como habitantes pessoas das mais diversas etnias: de negros a árabes, passando pelos tuaregues, um povo bérbere nômade ou seminômade.
Desde janeiro de 2013, o Mali está sob a intervenção francesa, com o apoio das principais potências imperialistas (EUA, Alemanha e Inglaterra) e também do Conselho de Segurança da ONU.
A justificativa do presidente François Hollande, do Partido Socialista francês, é o “combate ao terrorismo”. Nada mais falso. Da mesma forma que os Estados Unidos invadiram e ocuparam o Afeganistão e o Iraque, a intervenção do imperialismo francês não tem outro objetivo a não ser o de manter o controle sobre sua ex-colônia e impedir que o povo Tuareg, que luta pela sua autodeterminação, consolide os avanços que conquistaram em sua luta.
O imperialismo francês fala em impedir que se instale a “barbárie” dos salafistas (facção islâmica tradicionalista). A desculpa da intervenção, a luta contra os “extremistas islâmicos”, não é outra coisa que a luta do imperialismo francês pela manutenção das fronteiras definidas de forma arbitrária quando as potências imperialistas dividiram o continente de acordo com seus interesses. E, no mesmo sentido, para que as suas empresas sigam controlando as fontes de matérias-primas na região. Estamos, assim, diante de uma guerra de agressão colonial, levada pelo imperialismo francês e pela ditadura militar fantoche deste imperialismo, cujo objetivo é o massacre do povo Tuareg.
Um pouco de história: a independência e os TuaregsO Mali tornou-se colônia francesa no final do século 19. Em 1960, conquistou sua independência. Apesar de, num primeiro momento, o país estreitar laços com a ex-União Soviética e ser dirigido por nacionalistas, o controle francês da região sempre esteve presente. Após a crise das dívidas dos anos 80, este controle ganhou mais força através da privatização e da presença de multinacionais no ramo da telefonia (Orange), na produção e distribuição de eletricidade (Bouygues), nas minas, na produção do algodão etc.
Um dos problemas que afeta o Mali, decorrente da presença imperialista na África a partir do século 19, foi justamente a divisão entre povos que habitavam a região, a exemplo dos Tuareg: um povo seminômade que habita a região entre Argélia, Mali, Níger, Líbia, Chade, Burkina Faso e Nigéria. Estima-se que existam cerca de 1,5 milhões de Tuareg. Desde a independência do Mali, os conflitos com os Tuareg foram constantes, pois este povo reivindica a construção de seu próprio Estado nacional.
A primavera árabe e os conflitos no Norte do Mali
A derrota e a morte de Kadafi em outubro de 2011, cuja parte do seu exército era composta por populações Tuareg, teve duas consequências para a região norte de Mali: o deslocamento de uma parte dos combatentes defensores de Kadafi e também o deslocamento das armas para os grupos Tuareg da região.
Neste sentido, quatro grupos tiveram relativo reforço a partir do final de 2011: o Movimento Nacional de Libertação do Azawad (MNLA), grupo laico que luta pela autodeterminação dos Tuareg; o grupo Ansar Dine, de orientação salafista; o grupo Al Quaeda do Magreb Islâmico (AQMI) e sua cisão, o Movimento pela Unidade e Jihad na África do Oeste (Mujao), ambos de orientação islâmica, também. Os três últimos possuem alguma relação com a Al Qaeda.
No início de janeiro de 2012, o MNLA começou uma ofensiva tomando as cidades de Ménaka, Aguelok e Tessalit. A esta ofensiva, juntaram-se os outros grupos, principalmente, o Ansar Dine.
Devido aos conflitos e à instabilidade na região norte do país, o governo de Amadou Toumani Touré fez um deslocamento de tropas para sufocar a luta pela autodeterminação do povo Tuareg. O exército de Mali foi derrotado pela rebelião do povo Tuareg. Um golpe de Estado, em 22 de março, liderado pelo capitão do exército Amadou Sanogo, poucos dias antes das eleições e apoiado pelo imperialismo francês, preparou as condições para a ofensiva imperialista.
No final de maio, principalmente o MNLA e o Ansar Dine declararam o Estado independente de Azawad, que não foi reconhecido por nenhum outro país da região. Este é o verdadeiro pano de fundo da intervenção: o reconhecimento do MNLA e do Estado Azaward se converteram no centro do problema.
No intervalo entre o golpe e a proclamação do Estado Azaward, os grupos salafistas iniciaram sua ofensiva, tomando cidades do norte (como Kidal, Gao e Tombuctú). Ao não reconhecer o Estado Azaward, o imperialismo francês cria as condições para o isolamento do MNLA. Em finais de junho de 2012, o Ansar Dine e o Mujao (com o apoio do AQMI) avançaram sobre as áreas controladas pelo MNLA. Este último acabou perdendo controle da região, que passou a ser dominada pelos “islamistas radicais”.
Enquanto isto, há uma reorganização do próprio governo no Mali, patrocinada pelo imperialismo francês. Em 20 de agosto de 2012, por exigência da Comunidade Econômica dos Estados Africanos do Oeste (CEDAEO), foi formado um governo de “união nacional” (dos 31 ministros, 18 faziam parte do governo anterior ao golpe e quatro ministros são ligados à junta militar que deu o golpe). Este “novo governo” tomou como objetivo o combate aos “rebeldes do norte” para garantir a unidade do Estado do Mali.
A preparação da intervenção francesa
Neste cenário de conflito nacional, a França foi aos poucos abrindo as portas para uma intervenção armada. O antigo chefe da diplomacia francesa do governo Sarkozy, Alain Juppé, já tinha declarado, em fevereiro de 2012, que o centro de interesses era a “integralidade do território do Mali”. A política do governo Hollande seguiu o mesmo caminho. Uma das manobras do governo Hollande foi conseguir a aprovação da ONU em outubro de 2012 para a preparação de uma intervenção no Mali. Em 20 de dezembro, o Conselho de Segurança aprovou o envio de militares para “estabilizar” a região.
Abaixo a intervenção imperialista francesa!
O verdadeiro objetivo do imperialismo francês é garantir a divisão da África tal como ela foi concebida, há mais de um século, pelos imperialismos: separando povos com tradições e línguas próximas para garantir o bom funcionamento do saque imperialista realizado pelas empresas francesas.
Neste sentido, são absurdos, as declarações do Partido de Esquerda e do Partido Comunista Francês, principais organizações da Frente de Esquerda, de que a intervenção francesa é “inquietante”, que deveria ser feita sob a bandeira da ONU ou que deve ter somente o papel de “impedir” o avanço dos grupos rebeldes à Bamako, capital de Mali. A questão central, no entanto, não é quem dirige a intervenção estrangeira, mas a própria intervenção imperialista. Mais uma vez, o Partido Socialista se coloca à frente da defesa dos interesses coloniais da França e apoia o seu próprio imperialismo.
É necessário desmascarar a política do Estado imperialista francês com uma ampla campanha contra a intervenção imperialista e desmascarar a união sagrada que em nome dos “direitos humanos” poderá promover mais uma matança na África.
Imperialismo estadunidense e fundamentalismo religioso: uma longa história de amor.
Como esperado depois dos atentados em Paris, todos os principais monopólios de mídia do mundo iniciam sua clássica campanha de medo. O discurso de que a Europa está vulnerável ao terrorismo e o novo reforço ideológico da guerra ao terror fundamentam o fortalecimento dos aparelhos repressivos e de controle do Estado e a restrição das já escassas "liberdades democráticas" na Europa. A retórica enviesada dos monopólios de mídia, que verbaliza os interesses geopolíticos da burguesia, deve ser combatido a todo custo. A melhor forma disso é mostrar como historicamente o fundamentalismo religioso foi incentivado e usado como arma do imperialismo estadunidense para a vitória da contrarrevolução, o sufocamento de levantes de libertação nacional e das lutas anticapitalistas.
Mostraremos como fundamentalismo religioso é instrumentalizado por parte dos Estados Unidos, traçando uma análise histórica em grandes linhas, abordando a questão a partir da guarida aos fundamentalistas anti-soviéticos na guerra do Afeganistão, a ação dos mercenários na Líbia e Síria e o armamento do Estado Islâmico (ISIS).
A CIA – agência de inteligência dos EUA – começou a treinar, financiar, armar e apoiar politicamente organizações fundamentalistas anti-soviéticas no Afeganistão. A ex-URSS tinha uma ampla população muçulmana e vários países de maioria muçulmana. A agência norte-americana poderia ter apoiado organizações anti-soviéticas nacionalistas e laicas, mas sua avaliação é que os fundamentalistas cumpririam um trabalho melhor. Osama Bin Laden era um jovem milionário de família saudita, ao saber do início dos enfrentamentos de grupos fundamentalistas contra os “ateus soviéticos” (como a propaganda da CIA assimilada pelos jihadistas chamavam o governo de Moscou) engajou-se na luta. Recebeu treinamento, armas e dinheiro.
Em 1983 é criada a Aliança Islâmica do Mujahedin Afegão (IAAM, em inglês). A IAAM era uma reunião de todas as organizações fundamentalistas contra o poder soviético no Afeganistão. A articulação do imperialismo estadunidense garantiu um governo fundamentalista no Paquistão, Arábia Saudita (até hoje) e continuava fortalecendo a IAAM com fim de fazer do Afeganistão outro aliado fiel pró-EUA. Os príncipes saudistas “doaram” mais de 20 bilhões de dólares aos fundamentalistas afegãos, a CIA veio com um aporte de outros 20 bilhões. O resultado disso é que eles além de forte treinamento, boa estrutura logística, forte rede internacional de contatos e muito dinheiro, eles ainda podiam contar com mísseis anti-helicópteros e outros armamentos de ponta fundamentais na derrota dos soviéticos (o Afeganistão soviético era um país laico, as mulheres tinham os mesmos direitos que os homens e o islamismo dominante não tinha qualquer traço de fundamentalismo) [1].
A continuação da história de Osama Bin Laden todos sabemos. Ele se voltou contra os Estados Unidos, usou todo dinheiro, armas e treinamento que teve do imperialismo estadunidense para confrontá-lo. O 11 de setembro é apenas um desdobramento dos atos passados da CIA no Afeganistão. Aliás, é sempre importante lembrar que enquanto Bin Laden e seus “guerreiros” fundamentalistas estavam lutando contra os soviéticos, o Times de Londres os chamavam de “combatentes da liberdade” e “rebeldes”. A palavra “terrorista” não compareceu uma única vez. O filme Rambo 3 é uma apologia dos fundamentalistas jihadistas. Evidentemente que o imperialismo só mobiliza sua máquina de propaganda quando seu ex-aliado deixa de ser funcional aos seus planos.
Antes de prosseguimos para o próximo ponto, é importante lembrar dois fatos históricos. Depois dos atentados de 11 de setembro (muito suspeito!) o Afeganistão foi invadido com a desculpa de capturar Bin Laden, pois este seria chefe de uma super-rede terrorista que supostamente comandaria suas operações do país. O Iraque também foi ocupado militarmente. Saddam teria armas de destruição em massa que precisavam ser neutralizadas. Poucos meses depois da ocupação militar descobrimentos que a história das armas de destruição em massas era falsa - nunca apareceram. Bin Laden nunca foi achado no Afeganistão e a própria existência a Al Qedda com o nível de articulação que os Estados Unidos diz que a organização tem é questionável. Até hoje nenhuma prova consistente dessa suposta organização com estrutura mundial foi apresentada.
Mas vamos voltar ao uso do fundamentalismo religioso como instrumento do imperialismo estadunidense nos seus planos de dominação geopolítica. A chamada Primavera Árabe combinou uma série de revoltas legitimas de amplos segmentos sociais de vários países e ações orquestradas de desestabilização e dominação geopolítica comandadas pela CIA. A Líbia e a Síria são os exemplos mais claros do segundo caso.
Na Líbia a operação foi vitoriosa: Kadafi foi assassinado, toda estrutura do país destruída, centenas de pessoas chacinadas e as reservas de petróleo e gás natural sob comando das empresas monopolistas do setor e do governo do EUA. Mercenários supostamente ligados a al-Qaeda estão envolvidos até o pescoço na operação. É claro que assim como no Afeganistão, os mercenários tiveram aporte financeiro, militar, diplomático e logístico. Convenientemente, ninguém fala mais da situação da Líbia atual. Antes era o país com maior IDH da África, hoje é uma confusão de milícias que matam-se diariamente enquanto as reservas de combustível fóssil são tranquilamente exploradas [2].
A Síria por ter melhor estrutura militar, apoio geopolítico da Rússia e China e muito mais apoio interno do que tinha o governo líbio consegue resistir bravamente. De novo, a principal força mercenária é composta por fundamentalistas religiosos que não aceitam o fato do governo de Bashar Assad ser laico com convivência harmônica entre todas as religiões (algo raro na região).
É lógico que os jihadistas que lutam para derrubar Assad são chamados pelos monopólios de mídia de lutadores da liberdade [3]. Vários deles depois de guerrearem na Síria voltam para seus países de origem com treinamento e amplo conhecimento militar para lutar contra os “infiéis” do seu país. Os “terroristas” de Paris participaram da guerra na Síria contra o governo em nome do fundamentalismo religioso. Assad [e o povo sírio] que representa, nesse caso, a luta pela democracia e contra o obscurantismo religioso é taxado de ditador, déspota, sanguinário, etc. [4] (que os monopólios de mídia enquanto armas ideológicas do imperialismo façam isso é normal, bizarro é ver grupos de esquerda como o PSTU e as tendências morenistas do PSOL falaram dos mercenários como se fossem lutadores da liberdade).
Por fim, antes dos atentados em Paris, a moda era apresentar o Estado Islâmico, o ISIS, como principal ameaça à “civilização ocidental” (forma arrogante de os EUA se autodenominarem). Mas o ISIS e seus guerrilheiro fundamentalistas não seriam nada sem sua ligação com os Estados Unidos. Vamos dar a palavra para os deputados iraquianos:
Parlamentares iraquianos querem denunciar na ONU a coalizão liderada pelos Estados Unidos que continua sistematicamente entregando armas aos terroristas do EILL
Deputados do Parlamento do Iraque pediram nesta quinta-feira (01) ao governo em Bagdá quer apresentasse um relatório para as Nações Unidas (ONU) denunciando o fornecimento de armas pelo os EUA ao grupo EILL.Em um comunicado a imprensa estrangeira, o parlamentar iraquiano, Alia Nasif, considera que o lançamento de armas pelos aviões norte americanos em áreas de conflitos são intencionais e as armas sempre acabam em mãos de terroristas, o que contradiz o direito internacional e, portanto o governo iraquiano tem que denunciar perante a ONU [5].
Em outro trecho da matéria os deputados se queixam de que a Casa Branca diz que enviam as armas por engano. Seria cômico se não fosse trágico e estivesse ceifando a vida de milhares de pessoas. Na mesma matéria podemos ver a afirmação da que “Os Estados Unidos apoiam o Estado Islâmico no Iraque e na Síria, e de forma explicita o denominado Exercito Livre Sírio (ELS) e a oposição armada síria, afirmou o parlamentar.” O curioso é que os guerrilheiros curdos, comunistas e laicos, são a principal força de enfrentamento aos jihadistas assassinos do ISIS. O Exército de Libertação Curdo tem forte participação e destaque das mulheres, verdadeiras heroínas da liberdade, enquanto os fundamentalistas apoiados e usados pelo imperialismo estadunidense procuram atribuir a mulher um status sub-humano [6].
Não restam dúvidas. Como mostramos no texto: os principais grupos terroristas-fundamentalistas dos últimos anos foram financiados e apoiados das mais diversas formas pelos Estados Unidos para cumprir determinadas funções dentro da estratégia imperialista de dominação geopolítica (agindo enquanto representante e organizador mundial do capital). Portanto, a “guerra ao terror” não passa de uma estratégia ideológica para justificar expansões neocoloniais, invasões militares e controle interno do próprio povo estadunidense. O papel dos monopólios de mídia enquanto sustentáculo disso tudo é fundamental.
Poucos meses atrás um drone – avião teleguiado – bombardeou uma festa de casamento no Iêmen. A ação assassinou doze pessoas, todas civis [7]. A barbárie foi noticiada, mas quase nenhuma repercussão foi dada e a notícia já foi esquecida. Com a desculpa de atacar uma base da Al Qedda foram mortas brutalmente pessoas totalmente inocentes. Os monopólios de mídia não chamam isso de assassinato, atentado, chacina, etc. Compare a repercussão midiática dos mortos em Paris e dos mortos no Iêmen. A "repercussão" nunca é inocente, fortuita, espontânea. Existem razões políticas, geopolíticas, ideológicas e econômicas muito claras para o diferencial de repercussões dos "acontecimentos". Enfim, o fundamentalismo religioso – assim como o tráfico internacional de drogas – é usado como instrumento político-militar de ação do imperialismo e ainda é mostrado como um inimigo a ser combatido para fundamentar o fortalecimento do poder repressivo do Estado internamente (contra as classes trabalhadoras) e justificar e legitimar ideologicamente as ações militaristas do imperialismo.
Muitas vezes, os processos de independência da América Latina não são abordados de forma adequada nas aulas de história, seja pela falta de tempo, seja pela complexidade do conteúdo – que pode causar algumas confusões.
Este texto, tem a pretensão de fornecer um apoio a estudantes e professores que tem dificuldade de abordar, estudar e compreender o período das independências, que, na maioria das vezes, acaba sendo resumido à ação de alguns “personagens heróicos”, como Bolívar, na Venezuela, e San Martín, na Argentina.
Mapa antigo da América Latina
Neste texto será abordado apenas as independências da América Latina de colonização espanhola. Visto que, estas são, muitas vezes, relegadas a um “segundo plano” frente a independência das Treze Colônias inglesas e a do Brasil.
1. Contradições internas e externas.
Geralmente, ao se tratar das independências da América Latina, é colocada a tradicional contradição dos elementos locais, os criollos, contra os elementos externos: funcionários e governantes (corregidores e vice-reis) vindos da Espanha. Embora esta situação seja, de fato, verídica, ela sozinha não explica os motivos e o posterior desenvolvimento dos movimentos.
Os criollos eram a classe dominante na América Colonial. Eram donos de terras e minas, de trabalhadores escravizados e de indígenas submetidos a trabalhos servis. É bem verdade que os criollos eram incomodados pelos funcionários coloniais – muita vezes corruptos.
As reformas boubônicas (século XVIII), tentaram adequar algumas ideias iluministas de racionalidade às práticas de monopólio mercantilistas – reforçando assim o poder colonial. Os criollos passaram a ser vigiados de perto pelos funcionários espanhóis: o objetivo era evitar o contrabando e assegurar o máximo de controle possível às atividades produtivas exercidas pelos criollos; garantindo à Coroa os tributos vindos de impostos cobrados nas colônias. Sendo assim, as reformas boubônicas podem ser analisadas no sentido de “dividir para manter a dominação”: uma vez que dividiu as colônias em novos vice-reinos e com novos portos abertos ao comércio (comércio feito dentro da lógica do exclusivo metropolitano – que muitos chamam de “pacto colonial”[1]).
A rivalidade entre criollos e funcionários metropolitanos era, em última análise, um conflito “externo”: pois envolvia basicamente as relações de comércio entre os criollos, entre metrópole e outros países. As ideias liberais estavam surgindo e os criollos não suportavam mais ser asfixiados pelos sistema colonial.
Do ponto de vista interno, na dinâmica das próprias colônias, além dos criollos, que são a elite da sociedade, existem os já mencionados índios, trabalhadores escravizados, e uma grande massa de mestiços que tinha seu acesso restrito em muitos lugares (como igrejas por exemplo) e certas profissões. A maioria dos indígenas era submetida a trabalhos servis (nas fazendas e nas minas, a mita). Africanos eram submetidos a escravidão no Brasil, Colômbia (na época colonial Nova Granada), Venezuela e, principalmente nas Antilhas. Os mestiços, marginalizados, trabalhavam onde podiam: em geral viviam de empregos assalariados nas grandes cidades ou como peões nas regiões de pecuária extensiva (Rio da Prata – Argentina, Uruguai – e Rio Grande do Sul, principalmente). Todos estes grupos sociais vivendo em um mesmo espaço gera tensão. Volta e meia esta tensão virava revolta: tal como o movimento indígena de Tupac Amaru em fins do século XVIII. Tupac Amaru (que embora índio, era de uma antiga família da nobreza inca e foi educado no melhor estilo europeu em uma universidade do Peru) liderou um poderoso exército de indígenas que matou um governador chamado Arriaga.
Tupac Amaru
A revolta de Tupac Amaru é bastante reveladora sobre as tensões sociais. Ao mesmo tempo que pregava um “retorno ao passado”, das velhas tradições incaicas, também mostrava a ojeriza aos elevados impostos do sistema colonial. O que explica a brutalidade com que a revolta de Tupac Amaru foi dizimada pelos exércitos criollos (Tupac teve a língua cortada e foi esquartejado em praça pública) é a participação popular de índios, mestiços... e até mesmo de alguns criollos, mais pobres e insatisfeitos.
Nesta complexa contradição interna-externa, os movimentos de independência na América espanhola se iniciam um tanto quanto “caducos”. Basta citarmos o exemplo do levante de Francisco Miranda na Venezuela em 1806. Miranda, um criollo de ideias radicais que lutou nos Estados Unidos e na França, conseguiu apoio inglês e desembarcou na costa da Venezuela. Ele e seus seguidores acreditavam que ao brabar um grito de independência, o povo iria se juntar à sua causa. Mas o que ocorreu foi o contrário: o povo não se manifestou; os criollos reagiram e o movimento de Miranda foi logo debelado.
Um exemplo que ilustra muito bem esta contradição interna entre criollos e as classes perigosas (como eram chamados indígenas, negros e mestiços) nos processos de independência é o que ocorreu em Quito (atual Equador) em 1810. Neste ano, enquanto os criollos se reuniam numa Junta de Governo e debatiam a possibilidade de uma emancipação, índios e mestiços se revoltaram contra a Junta. Os criollos exploravam diretamente os indígenas, e não o rei da Espanha – que vivia longe, do outro lado do imenso oceano... Se havia algum culpado pela sua miséria, eram os criollos, pensavam indígenas e mestiços. A partir daí, podemos perceber como o próprio sistema colonial criava estas contradições internas. Também é conveniente lembrar do movimento de José Tomas Boves, um dos grandes inimigos de Bolívar. Boves, que era espanhol e pertencia a uma categoria social de fazendeiros criadores de gado (llanos) reuniu uma massa de camponeses, pobres, mestiços e negros que em nome do rei da Espanha ocupou terras e as distribuiu para seus seguidores miseráveis. O movimento de Boves é um autêntico movimento de pobres contra ricos.
Ainda podemos citar o exemplo do primeiro movimento de independência do México (Nova Espanha) liderado pelo padre Miguel Hidalgo. Agregando camponeses – em sua maioria indígenas ou mestiços – Hidalgo formou um exército de cerca de 80 mil pessoas com o objetivo de chegar a Cidade do México. Seu lema era “viva o rei, abaixo o mal governo!”. Seu estandarte era a Virgem de Guadalupe. E seu objetivo era dar terra aos indígenas e por fim ao regime de castas. Mais uma vez os criollos não poderiam deixar o povo tomar as rédeas da independência e o movimento de Hidalgo foi temporariamente abalado; ressurgindo mais tarde com um de seus seguidores, o também padre José Maria Morelos.
2. Influências
Os livros didáticos geralmente apontam como as grandes influências dos movimentos de independência a Revolução Francesa de 1789 e o pensamento iluminista. A elite criolla, urbana e bem instruída nas universidades americanas e europeias, tinha acesso a leituras iluministas e aos seus principais expoentes (Voltaire, Rousseau, Montesquieu, Smith). Os criollos mais radicais, tinham sua admiração por Marat, Robespierre e Saint-Just. O fato é que a independência das Treze Colônias em 1776 e a Revolução Haitiana (1794-1804) devem ser considerados como influências muito mais decisivas do que a Revolução Francesa.
Em primeiro lugar, a Espanha era aliada da França. Foi somente quando o absolutista Fernando VII subiu ao trono, após uma trama palaciana, que o governo francês (na época a ditadura militar de Napoleão) resolveu invadir o país para não correr o risco de perder um aliado. A solução que Napoleão encontrou foi colocar no trono da Espanha seu irmão, José, em 1808. Assim, ele garantia um país aliado na Europa e também as colonias espanholas na América como possível área de dominação francesa. Por isso que após 1808 os movimentos de independência ganham força. Ao mesmo tempo que os espanhóis passam a guerra aberta contra os invasores franceses e o “rei” francês no trono de seu país.
Mapa das Treze Colonias.
A independência das Treze Colonias é um fato que influênciou não só na América mas também a própria Revolução Francesa. Ocorre que, após os Estados Unidos consolidarem sua independência, eles adotaram uma postura “isolacionista”, enquanto a França, fazia questão de expandir seus ideais para o mundo. Mas a postura isolacionista dos Estados Unidos, não impediu que se tornasse um exemplo para os criollos, principalmente aqueles que queriam uma “independência sem mudanças”: o país rompeu com a Inglaterra e continuou com a escravidão. Uma independência que começou radical, mas terminou com um acordo entre elites (Constituição de 1787, ainda hoje em vigor, com várias emendas).
Por outro lado, a Revolução Haitiana, que se estende de 1794 até 1804, é um exemplo radical. Negros escravizados levantaram-se contra os brancos proprietários de terra pra proclamar, ao mesmo tempo, a independência e o fim da escravidão! Todos os países da América conheceram a escravidão e o pesadelo de qualquer dono de escravizados é a revolta destes trabalhadores contra sua autoridade. O lema do Haiti é “a união faz a força” e, de fato, se escravizados se unissem, teriam força o suficiente para pôr abaixo qualquer sistema colonial. Não é a toa, que a Revolução Haitiana resultou num “bloqueio continental americano” ao Haiti. De acordo com Jacob Gorender: "As dificuldades do Haiti não se deveram, com o passar do tempo, somente ao domínio da agricultura de subsistência e à ausência de perspectivas econômicas elevadas. Deveram-se também, e não menos, à quarentena, que lhe impuseram até mesmo as nações latino-americanas recém-independentes"[2]
3. Os projetos de independência
As independências se desenvolvem num longo e complexo processo que vai de (mais ou menos) 1808 até 1824 (batalha de Ayachuco – vitória final dos criollos contra os exércitos espanhóis na Bolívia/Alto Peru). No decorrer destes anos, os criollos não esboçaram apenas um, mas vários projetos de independência.
Primeiramente, temos que considerar que haviam vários “graus” de criollos. Havia, obviamente, os mais abastados, donos de terras e minas que possuíam levas de mão de obra a sua disposição (escravizados, livres e servis como a maioria esmagadora dos indígenas). Mas também havia os criollos, que embora tenham um pedaço de terra, não eram tão ricos e viviam modestamente.
Esta situação, muitas vezes aproximava alguns criollos às classes perigosas e isto fez com que projetos “alternativos” ao “independência sem mudanças” da elite criolla, se tornassem um problema maior para os ricos do que a própria resistência espanhola na época das guerras de independência.
Exemplos não nos faltam. Um deles é o projeto de Hidalgo e Morelos, ao qual acabamos de nos referir. Ambos eram padres do clero secular, sendo assim tinham contato com os mais desfavorecidos pelo sistema colonial, explorados pelos ricos criollos. Hidalgo foi morto em 1811, mas seu discípulo, Morelos, continuou seu projeto de independência no México. Um projeto radical e socializante, que pregava a distribuição de terras, o fim da escravidão e dos tributos e, principalmente, a soberania popular.
Morelos representava um perigo tão grande para a elite criolla, que estes acabaram adotando um modelo conservador de independência semelhante ao do Brasil, com um imperador: o militar Agustín Iturbide. Só para citar um exemplo, Morelos convocou uma assembleia constituinte para o México, o que despertou a fúria da elite criolla. Ao invés de adotar a constituição de Morelos (redigida sob inspiração dos ideais citados acima: distribuição de terras, o fim da escravidão, dos tributos e soberania popular), os criollos resolveram adotar a constituição espanhola de 1813!
O movimento mais organizado e radical, que representou a mais original alternativa às independências conservadoras da elite criolla, foi a Liga Federal de José Artigas.
José Artigas era um criollo de origem modesta que conseguiu entrar numa milicia chamada corpo de blandengues. A função dos bandengues era policiar as terras da Banda Oriental (atual Uruguai) contra os indígenas. Mas ao entrar em contato com os indígenas, Artigas e sua tropa passaram a mediar conflitos e não mais expulsa-los das terras. Assim, ele percebeu que faltava terra para os índios... e terra para eles havia, sempre houve.
Quando o movimento de independência iniciou em Buenos Aires (1810), Artigas foi até a capital do vice-reino da Prata (que na época agregava o Paraguai, Uruguai, Bolívia, além da própria Argentina) lutar contra os espanhóis. Quando volta para a Banda Oriental, requisita auxílio dos buenairenses para libertar Montevidéu dos monarquistas. Mas a ajuda não vem. Artigas acaba formando um exército – de criollos, mestiços, negros e índios – que lutam juntos contra o poder colonial. Por fim, os artiguistas tomam Montevidéu, mas inicia a reação contra seu movimento.
De 1813 até 1820, Artigas e seus seguidores formam a Liga Federal dos Povos Livres. Uma república federativa que englobava as províncias do norte da atual Argentina, o Uruguai e parte do Rio Grande do Sul. Artigas distribuiu terras. O seu lema era “que os mais necessitados sejam os maiores beneficiados”. Mas era difícil por em prática suas ideias, isto porque, Artigas e seus seguidores, lutavam paralelamente contra as tropas de Buenos Aires, contra os luso-brasileiros e contra os exércitos da Espanha! Podemos dizer que a independência da Argentina (só proclamada em 1816) é uma reação contra Artigas.
Embora estes projetos alternativos não tenham tido uma continuidade, falar sobre as independências sem cita-los, é, no mínimo, ocultar uma parte essencial deste período da história americana.
***
Os tópicos e as analises acima, são apenas recortes. Foram feitos desta forma para facilitar a compreensão dos processos; e assim dar um subsídio empírico para se pensar os movimentos e projetos de independência. Outras leituras, de outros historiadores, são possíveis, sem dúvida. Cabe, neste sentido, levar em conta a criatividade de cada professor/historiador.
É importante que se diga que o conteúdo das independências da América Latina (de colonização espanhola) é um conteúdo que permanece relegado a um segundo plano. Muitos livros didáticos contribuem para isto, principalmente porque adotam a velha “história dos grandes personagens”. Bolívar é geralmente o mais citado, mas pouco se compreende a complexidade deste personagem – que serviu, por muito tempo de modelo ao pensamento conservador da Venezuela, até ser “ressuscitado” numa leitura de esquerda por Hugo Chavez.
Tratar com maior abrangência dos processos de independência da América, como um todo, é apenas uma parte da luta contra o eurocentrismo na história – principalmente na sala de aula.
Notas:
[1] O termo “pacto colonial”, disseminado por uma historiografia antiga, mas ainda cheia de força, não é condizente com a situação objetiva das relações metrópole-colônias. Isto porque a ideia de “pacto” sugere que havia um acordo amigável entre colonos/criollos e os governantes metropolitanos. Uma vez que a colonização europeia da América está dentro das práticas mercantilistas, em que o governo (o Estado Absolutista) se esforçava para manter o controle sobre todas as atividades econômicas, não se pode dizer que houve um “pacto amigável” e sim uma “imposição” característica da própria lógica mercantilista: os colonos tinham a função de enriquecer a metrópole, nada além disso – essencialmente não era algo aberto a negociações. Sendo assim, o termo mais correto a ser utilizado é sistema colonial, uma vez que “pacto” da a ideia de “unidade”, enquanto que “sistema” parece abranger de forma mais adequada a situação das diversas práticas que mantinham as relações metrópole-colônias. Ademais, esta questão de “pacto colonial” pode ser debatida nas salas de aula e nos grupos de estudo.
[2] O épico e o trágico na história do Haiti. Estudos Avançados 18 (50), 2004, p. 301.
Sobre o Autor:
Fábio Melo. Membro Permanente e fundador do Grupo de Estudos Americanista Cipriano Barata. Pesquisa sobre História Social da América e Educação na América (América Latina e Estados Unidos). Produtor e radialista do programa "História em Pauta" na rádio 3w. Tem diversos textos escritos sobre educação, cultura e política.
“A Bolívia é o país que mais crescerá na América Latina”, elogia FMI
Segundo informe da organização, o país teve com os oito anos de Evo Morales melhorias em seus índices sociais e econômicos – provável consequência de um rompimento das políticas econômicas pós-neoliberais recomendadas pelo próprio FMI e o Banco Mundial
“A Bolívia é o país que mais crescerá na América Latina, junto com a Colômbia”, diz o informe mais recente do FMI (Fundo Monetário Internacional), publicado nesta terça-feira (07). Apesar da economia em expansão, o maior desafio do país nos próximos anos será superar totalmente a pobreza extrema, que, segundo a ONU atinge 25,4% da população. Questões econômicas, infraestrutura e os desafios sociais que persistem no país estão entre os pontos centrais das eleições, que serão realizadas neste domingo (12) para escolher presidente, vice-presidente, senadores e deputados no país.
Em termos econômicos, o país resistiu melhor que grandes economias latino-americanas à crise financeira internacional iniciada em 2008. O movimento de combate aos efeitos da crise foi feito pela forte presença de empresas públicas, que foram ampliadas, em todos os estados do país de forma descentralizada e contribuíram para fortalecer o mercado interno.
“Há vários anos, o desempenho macroeconômico da Bolívia tem sido muito bom. Essa performance, ativamente apoiada em políticas sociais, ajudou a aumentar em quase três vezes a renda média da população e reduziu a pobreza e a desigualdade”, disse a economista do FMI Ana Corbacho, em coletiva de imprensa concedida no começo do ano. Para 2014, a estimativa do organismo é de que o país cresça 6,4%.
Para entender o cenário econômico boliviano e os desafios que deverá ser enfrentado pelo novo governo, Opera Mundi conversou com o economista, diretor do Celag (Centro Estratégico Latino-Americano de Geopolítica) e professor de pós-graduação da Flacso (Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais), Alfredo Serrano, que está em La Paz para acompanhar o processo eleitoral no país andino.
O informe do Celag sobre as eleições bolivianas, publicado no último mês, avalia que o desafio para o próximo mandato presidencial será manter o crescimento sustentável, diminuir o desemprego, superar a pobreza e a pobreza extrema, melhorar os índices de saneamento e expandir a infraestrutura com a criação de estradas e o fornecimento de gás para o interior do país.
Para Serrano, a avaliação positiva do FMI com relação à Bolívia é consequência de um rompimento das políticas econômicas pós-neoliberais recomendadas por organismos internacionais como o próprio Fundo e o Banco Mundial. “[Isso] Gerou efeitos e resultados que não são os defendidos fundamentalmente pelo FMI”, avalia o economista.
Após nacionalizar setores estratégicos, o país ordenou as contas, redistribuiu excedentes econômicos com políticas sociais e isso “teve um efeito dominó no consumo interno, além de satisfazer necessidades básicas, que antes eram insatisfeitas. Além disso, o modelo adotado hoje permite ao país acumular uma reserva que se encontra acima da média regional em termos do PIB, o que aplaude o FMI”, avalia Serrano.
Crise econômica
Os números positivos se devem também à particularidade da economia boliviana. “Apesar de Brasil e Argentina terem grandes ‘translatinas’ [empresas que operam na América Latina e no Caribe], dependem muito do capital financeiro internacional. Os modelos produtivos também são estruturas concentradas em poucas mãos. Já a Bolívia tem a vantagem de ter um modelo econômico arraigado na produção comunitária pré-capitalista com certa logica de intercâmbio capitalista”, esclarece Serrano. A economia boliviana é, portanto, pouco dolarizada. Nos últimos anos, inclusive, a tendência é de que a moeda nacional cresça, fortalecendo ainda mais a economia, observa.
Apesar dos avanços obtidos no país, Serrano considera que não é possível falar, ainda, em uma entrada massiva de pessoas na classe média, embora “seja certo que as pessoas estão em condição melhor do que antes”. Para o especialista, o grande desafio para o futuro da Bolívia é modificar a matriz produtiva do país para satisfazer, de forma sustentável, a nova demanda interna e assim “não depender fundamentalmente das importações, como sucede em outros países da América Latina”.
Integração regional
A integração latino-americana é outro ponto importante dentro desse processo, aponta o professor. “A Bolívia entendeu que qualquer mudança interna exige uma fórmula diferente nas relações exteriores. O governo entende que a recuperação da soberania é a única maneira de transformar o modelo econômico interno de forma virtuosa e entende que só se pode resistir ao capital transnacional a partir de uma grande aliança regional. Isso é uma das coisas que Bolívia levou a cabo com muito afinco”.
No âmbito regional, a integração é o caminho para se proteger de certas ofensivas a partir de alianças com Estados como Brasil, Argentina, Venezuela e Equador, avalia o economista. “É fundamental assumir um papel protagonista na região e considero oportuno participar do Mercosul diferente da era neoliberal, com rosto mais humano”. Ele conclui que a aproximação com o G-77 + China “mostra como a Bolívia deixou de ser um país isolado, satélite dos países capitalistas mundiais, para ser parte ativa das novas transições geopolíticas no âmbito mundial”.
Escravos da moda. Quem se importa com a procedência?
O trabalho degradante deixa muita gente indignada, mas, na hora de comprar roupa nova, poucos se preocupam se a loja ou a marca tirou algum proveito dessa prática
19/08/2014 - Cida de Oliveira - de São Paulo (SP)
A foto de um menino paquistanês costurando uma bola de futebol da Nike em 1996, nas páginas da extinta revista Life, causou indignação. No mesmo ano, o documentarista norte-americano Michael Moore filmou conversa com o presidente da multinacional, Phil Knight, para o documentário The Big One. “Você não tem problema de consciência? Sabe como vivem seus empregados na Indonésia?”, questionou. O filme foi exibido em 1998, quando as condições degradantes de trabalhadores da companhia em países da Ásia já eram conhecidas e a marca tinha se tornado sinônimo de exploração.
No mesmo ano, ativistas dos direitos humanos aproveitaram o Mundial da França para denunciar o trabalho de crianças na produção de bolas e chuteiras. Com ajuda da internet, consumidores de todo o mundo boicotaram produtos da marca, derrubaram executivos e ações nas bolsas. Para limpar a barra, a empresa passou a controlar as relações de trabalho nas subsidiárias e a investir em marketing.
No final de 1999, curiosamente, um dos principais garotos-propaganda da marca, o ex-jogador Ronaldo, foi nomeado embaixador do Programa da Organização das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), para ajudar a disseminar ações de combate às desigualdades. Mesmo assim, a companhia não conseguiu se desvencilhar da imagem negativa. O caso Nike é emblemático no mundo quando se trata de demonstração de força do consumidor.
No Brasil, é a Zara. Em 2011, a grife espanhola ganhou as manchetes não pelo sucesso da nova coleção de roupas caras, mas pelo trabalho análogo à escravidão flagrado por fiscais na cadeia produtiva. Em São Paulo, bolivianos ganhavam R$ 2 por peça produzida em oficinas de costura terceirizadas para a AHA, que por sua vez prestava serviços para a Zara no Brasil. Os executivos da empresa tentaram desfazer o vínculo. O episódio obteve destaque nas redes sociais e a marca foi alvo de protestos e boicote. “Por mais que eu gostasse de usar, cheguei a deixar de lado uma peça da marca que ganhei de presente. Em vez de status, a roupa passou a dar vergonha”, diz a recepcionista paulistana Bruna Araújo, 17 anos.
O barulho levou acadêmicos a estudar o assunto. Os professores Cintia Rodrigues de Oliveira, Valdir Machado Valadão Júnior e Rodrigo Miranda, da Faculdade de Gestão e Negócios da Universidade Federal de Uberlândia (MG), analisaram comentários de internautas sobre o caso. A conclusão é que o consumidor entende que o crime corporativo é compensador do ponto de vista financeiro e que a empresa deve ser fiscalizada intensamente pelo poder público e punida com multas severas. E mais: que a população aceita tal crime ao continuar comprando da empresa.
Em abril, a grife foi responsabilizada pelo MPT. A justificativa é que, como detentora do poder econômico relevante na cadeia produtiva, pode proteger os 15 mil trabalhadores subordinados a ela e não apenas os das pequenas oficinas. A Zara anunciou que vai recorrer, alegando que não obteve vantagem financeira com a irregularidade cometida pela AHA – que não foi investigada, julgada, nem punida. Esta não é a única a ser envolvida em casos assim.
Nos últimos quatro anos, fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) flagraram trabalhadores bolivianos em condições degradantes em oficinas de costura fornecedoras de marcas populares e caras. Autuada 48 vezes em 2010 e multada, a Marisa assinou um TAC e afirma fiscalizar, mas não divulga os resultados. Absolvida em primeira instância, questiona o governo na Justiça por publicar a “lista suja” do trabalho escravo. O MTE recorre da absolvição.
A C&A não chegou a receber autuação formal, mas passou a fazer auditorias surpresa e divulga na internet casos de trabalho infantil e pagamento abaixo do salário mínimo. A Collins assinou TAC e passou a fiscalizar os parceiros. Já a 775 não fiscaliza nem informa as ações para evitar o trabalho escravo na produção. Com oficinas flagradas em 2011, as Pernambucanas se recusaram a assinar acordo para sanar os problemas e não publicam dados das auditorias que garantem fazer. A Gregory que, em 2012, recebeu 25 autos de infração, não assinou TAC e não diz o que faz para combater o trabalho escravo.
No ano passado, foi a vez de oficinas da Bo.Bô, Le Lis Blanc e John John, e da Cori, do mesmo grupo de Emme e Luigi Bertolli. As marcas não declaram ações contra trabalho escravo ou se descartam fornecedores. Em maio passado, fiscais encontraram bolivianos costurando para a M. Offi cer – o que já tinha acontecido em novembro de 2013. Em julho, o MPT pediu à Justiça que responsabilize a marca por trabalho escravo, além de multa de R$10 milhões por danos morais e que seja proibida de atuar no estado de São Paulo.
Em maio, durante desfile da São Paulo Fashion Week, modelos e estilistas da Ellus subiram à passarela com camisetas com a frase: “Abaixo este Brasil atrasado”. A grife que “desabafava”, como alegaram os idealizadores, é a mesma denunciada em 2012 pelo MPT por trabalho análogo à escravidão, tráfico de trabalhadores e trabalho indígena.
O problema é outra face do trabalho degradante, que já foi mais comum no campo. Em 2013, pela primeira vez, o número de trabalhadores resgatados em operações de fiscalização foi maior em áreas urbanas.
Pressão
O escândalo na moda e os boicotes intensificaram o debate em torno da questão. A ponto de, segundo o jornalista Leonardo Sakamoto, pressionar a instalação de CPIs estaduais e em nível nacional, que influíram na aprovação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 81/2014, no final de maio, pelo Senado, depois de quase duas décadas de debates.
A PEC prevê o confisco de propriedades em que esse crime for encontrado e a destinação à reforma agrária ou a programas de habitação urbanos. A emenda conceitua como escravo o trabalho exaustivo, a jornada exaustiva, o impedimento de ir e vir, mas ainda depende de regulamentação, o que deve ser fonte de novos embates no Congresso.
Coordenador da organização Repórter Brasil, que mantém um portal reconhecido pela atuação em prol do trabalho decente, o jornalista Leonardo Sakamoto diz que o boicote é um instrumento poderoso contra o trabalho escravo por afetar mais que as vendas. Por mais passageiro que seja, arranha a marca e influencia investidores, o maior patrimônio das empresas, como ocorreu com a Nike e, agora, com a Zara.
No entanto, para Sakamoto, o consumidor se preocupa é com qualidade e preço. “Em geral, como não gosta de ser enganado, fica indignado quando paga caro por um produto e descobre que não há garantia social. É aí que fica indignado, insatisfeito e passa a boicotar”, diz.
“É inadmissível as grifes explorarem mão de obra e ainda venderem roupas tão caras. Você não paga menos de R$ 400 em algumas camisetas de marca que pagam R$ 10 por peça bordada e que lançam coleções em desfiles como a São Paulo Fashion Week”, reclama a pesquisadora paulistana Ana Paula Nascimento, 41 anos.
Consultor de conteúdos e metodologias do Instituto Akatu, associação que defende consumo consciente para a sustentabilidade, Dalberto Adulis concorda com Sakamoto, mas entende que o consumidor está ficando mais crítico, que desconfia das promessas das empresas e prefere marcas comprometidas com o meio ambiente e que oferecem boas condições de trabalho a empregados. E o comportamento, em franca evolução, depende de informação para ser ainda mais engajado.
“O consumo consciente requer educação e informação que nem todo brasileiro tem. Quando todos tiverem, vão cobrar e pressionar mais”, afirma. A professora Silvia Cristina Gomes, 31 anos, e o namorado, o militar Paulo Henrique de Carvalho, 23, reclamam justamente disso. Eles contam que, muitas vezes, pensam no trabalho degradante na produção das roupas que usam, o que, porém, não faz diferença na hora de comprar. “Nunca me lembro disso nem deixei de comprar por essa razão. Compro conforme a promoção, o preço, o produto. Só depois, vou pensar no trabalho escravo”, diz Silvia. “A gente vê a roupa na loja, no mostruário, mas não tem como saber a procedência”, completa Paulo.
Adulis, do Akatu, destaca que os consumidores de menor renda, que mais se identificam com os trabalhadores, são os que acabam se beneficiando com a oferta de produtos mais baratos em função da exploração da mão de obra. “A questão é como assegurar preço para produto com atributo de sustentabilidade ambiental, social e trabalhista que o mantenha competitivo em relação aos outros.”
“Acho muito triste essa situação; lojas tão grandes, marcas de grife, pagarem tão mal para o trabalhador”, comenta a recepcionista Raimunda Silva, 59 anos, de São Paulo, que afirma nunca ter se arrependido das compras que faz, mesmo em lojas ligadas ao trabalho escravo. “No momento em que estou comprando, com tantos atrativos, nem raciocino.”
A auxiliar de saúde bucal Maria do Carmo Conceição de Santana, 43 anos, vai além: “Sou meio desligada. E quando compro, estou envolvida com a escolha, não lembro de mais nada, mas acho que trabalho escravo deve ser fiscalizado pelo governo, não pela gente”.
O que é trabalho escravo?
✓ As dificuldades para erradicar a prática se originam da pobreza. “Gatos” (agentes) aliciam trabalhadores em situação vulnerável em várias regiões do país. As despesas de viagem já começam a endividar o trabalhador, que ainda será “aprisionado” a custos com alimentação e medicamentos, por exemplo
✓ O artigo 149 do Código Penal considera crime reduzir alguém à condição análoga à de escravo, “quer submetendo-se a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto”
✓ Para a Organização Internacional do Trabalho (OIT), o artigo 149 é consistente com a sua Convenção 29. A entidade considera o Brasil um país “fortemente comprometido” com o combate à prática da escravidão contemporânea
✓ Em 27 de maio, o Senado aprovou a chamada PEC do Trabalho Escravo, depois de 15 anos de tramitação. A batalha agora é pela regulamentação. Defensores da PEC temem retrocesso. Pela PEC, podem ser expropriadas, para fins de reforma agrária, áreas nas quais seja registrada ocorrência de escravidão
✓ Em 1995, o governo iniciou as operações de fiscalização móvel, para erradicação do trabalho escravo. Até 2013, foram 1.572 em 3.741 estabelecimentos, com 46.478 pessoas resgatadas
✓ No ano passado, pela primeira vez o número de trabalhadores no setor urbano (1.068) foi maior que no meio rural. O Ministério do Trabalho e Emprego credita parte desse resultado ao aumento da fiscalização nessas áreas. Construção civil e setor têxtil concentram ocorrências
✓ Outras iniciativa no combate ao trabalho escravo no Brasil é a chamada “lista suja”, divulgada periodicamente, com nomes de empregadores que usam a prática. A relação atual tem 549 nomes. Acesse em bit.ly/mte_lista_suja
✓ O Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo foi criado em 2005 pelo Instituto Ethos, o Instituto Observatório Brasil, a ONG Repórter Brasil e a OIT. No ano passado, surgiu o InPacto, instituto criado para “fortalecer e ampliar” as ações que visam a conscientizar as empresas sobre ocorrência de trabalho escravo na cadeia produtiva.
Lojas com sinal verde
Ajudar o consumidor a conhecer a conduta de algumas das lojas preferidas e fazer escolhas mais conscientes. Esse é o objetivo do aplicativo para celular Moda Livre, iniciativa da organização Repórter Brasil.
Com mais de 5 mil downloads, o aplicativo é destinado a quem gosta de moda, mas não quer que alguém tenha sido explorado para costurar roupas. Traz avaliações de 22 marcas a partir de questionários respondidos pelas próprias empresas. São classificadas com verde aquelas que têm mecanismos de acompanhamento sobre a cadeia produtiva e histórico negativo em relação ao tema. Recebem amarelo as que demonstram ter mecanismos de acompanhamento, mas apresentam histórico desfavorável em casos de trabalho escravo ou precisam aprimorar esses mecanismos. Já o vermelho é para aquelas que não contam com mecanismos de acompanhamento, têm histórico desfavorável ou não responderam ao questionário.
Segundo o aplicativo, que não tem a pretensão de recomendar a compra ou boicote de determinadas marcas, mostram a pior avaliação 775, Bo.Bô, Centauro, Collins, Gregory, Havan, John John, Leader, Le Lis Blanc e Talita Kume. Ficam no nível intermediário Cori, Dzarm, Emme, Hering, Luigi Bertolli, Marisa, Pernambucanas, PUC, Renner, Riachuelo e Zara. A C&A tem a melhor avaliação.
Segundo o coordenador da Repórter Brasil, Leonardo Sakamoto, o Moda Livre vai ser atualizado, com inclusão de outras marcas. Outros setores, como automobilístico e de eletrodomésticos, terão em breve um aplicativo semelhante.
Meridionalismo Geopolítico - Palestra do André Martin no Congresso Nacional Brasileiro
O que são os Brics?
Brics é uma sigla que se refere a Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, que se destacaram no cenário mundial pelo rápido crescimento das suas economias em desenvolvimento. O acrônimo foi cunhado e proeminentemente usado pelo economista Jim O'Neill, chefe de pesquisa em economia global do grupo financeiro Goldman Sachs, em 2001. Ao contrário do que algumas pessoas pensam, estes países não compõem um bloco econômico, apenas compartilham de uma situação econômica com índices de desenvolvimento e situações econômicas parecidas. Em Dezembro de 2010, a Bric convidou formalmente a África do Sul para se unir ao grupo. O convite foi feito por Yang Jiechi, que ocupa a Presidência rotatória do grupo. E a sigla ganhou um S, para África do Sul.
Cada vez mais popular tanto nas redes sociais como na mídia tradicional, o presidente do Uruguai, Pepe Mujica, arrisca-se a sofrer um processo de diluição de imagem semelhante ao que atingiu Nelson Mandela. Aos poucos, cultua-se o mito, esvaziado de sentidos — e se esquecem suas ideias e batalhas. Por isso, vale ler o diálogo que Pepe manteve, no final do ano passado, com o jornalista catalão Antoni Traveria. Publicada no site argentino El Puercoespín, a entrevista revela um presidente que vai muito além do simpático bonachão que despreza cerimônias e luxos.
Mujica, que viveu a luta armada e compartilhou os projetos da esquerda leninista, parece um crítico arguto das experiências socialistas do século XX. Coloca em xeque, em especial, uma crença trágica que marcou a União Soviética e os países que nela se inspiraram: a ideia de que o essencial, para construir uma nova sociedade, era alterar as bases materiais da produção de riquezas. ”Não se constrói socialismo com pedreiros, capatazes e mestres de obra capitalistas”, ironiza o presidente. Não se trata de uma constatação lastimosa sobre o passado ou de um desalento. Mujica mantém-se convicto de que o sistema em que estamos mergulhados precisa e pode ser superado. Mas será um processo lento, como toda a mudança de mentalidades, e precisa priorizar o choque de valores: tornar cada vez mais clara a mediocridade da vida burguesa e apontar modos alternativos de convívio e produção. Leia a seguir, alguns dos trechos centrais da entrevista:
“A batalha agora é muito mais longa. As mudanças materiais, as relações de propriedade, nem sequer são o mais importante. O fundamental são as mudanças culturais e estas transformações exigem muitíssimo tempo. Mesmo nós, que não podemos aceitar filosoficamente o capitalismo, estamos cercados de capitalismo em todos os usos e costumes de nossas vidas, de nossas sociedades. Ninguém escapa à densa malha do mercado, a sua tirania. Estamos em luta pela igualdade e para amortecer por todos os meios as vergonhas sociais. Temos que aplicar políticas fiscais que ajudem a repartir — ainda que seja uma parte do excedente — em favor dos desfavorecidos. Os setores proprietários dizem que não se deve dar o peixe, mas ensinar as pessoas a pescar; mas quando destroçamos seu barco, roubamos sua vara e tiramos seus anzóis, é preciso começar dando-lhes o peixe”.
“A vida é muito bela e é preciso procurar fazer as coisas enquanto a sociedade real funciona, ainda que seja capitalista. Tenho que cobrar impostos para mitigar as enormes dificuldades sociais; ao mesmo tempo, não posso cair no conformismo crônico de pensar que reformando o capitalismo vou a algum lado. Não podemos substituir as forças produtivas da noite para o dia, nem em dez anos. São processos que precisam de coparticipação e inteligência. Ao mesmo tempo em que lutamos para transformar o futuro, é preciso fazer funcionar o velho, porque as pessoas têm de viver. É uma equação difícil. O desafio é bravo. Há quem siga com o mesmo que dizíamos nos anos 1950. Não se deram conta do que ocorreu no mundo e por quê ocorreu. Sinto como minhas as derrotas do movimento socialista. Me ensinam o que não devo fazer. Mas isso não significa que vá engolir a pastilha do capitalismo, nesta altura de minha vida”.
“Não sei se vão me dar bola, mas digo aos jovens de hoje que aprendemos mais com o fracasso e a dor que com a bonança. Na vida pessoal e na coletiva pode-se cair uma, duas, muitas vezes, mas a questão é voltar a começar. E é preciso criar mundos de felicidade com poucas coisas, com sobriedade. Refiro-me a viver com bagagem leve, a não viver escravizado pela renovação consumista permanente que é uma febre e obriga a trabalhar, trabalhar e trabalhar para pagar contas que nunca terminam. Não se trata de uma apologia da pobreza, mas de um elogio à sobriedade — não quero usar a palavra austeridade, porque na Europa está sendo muito prostituída, quando se deixa as pessoas sem trabalho em nome do ‘austero’”.
“Em toda a história do Uruguai, o presidente repartia as licenças de rádio e TV com o dedo. Tivemos a ideia de abrir consultas e processos democráticos baseados em méritos. Pensamos e realizamos! O que certa imprensa diga não me preocupa. Já os conheço. O problema que o diário [uruguaio] El País pode me criticar e se, algum dia, estiver de acordo e me elogiar. Seria sinal de que ando mal”.
[Para ler, na íntegra (em castelhano) a entrevista com Pepe Mujica, clique aqui]
O planeta possui 7 bilhões de pessoas. Dados espantosos sobre a distribuição da riqueza:
1 - Qualquer pessoa que possua bens em valor total superior a R$ 8.600,00 (uma moto usada) possui mais riqueza do que 3 bilhões e 500 milhões de pessoas no mundo inteiro. Está na metade superior da posse de riquezas.
2- Quem possui bens em valor superior a 162 mil reais (uma casa simples em São Gonçalo, RJ) possui mais riqueza do que 6 bilhões e 300 milhões de pessoas. Pertence aos dez porcento mais ricos do mundo.
3- Quem tem bens em valor superior a um milhão e seiscentos mil reais (uma boa casa em Camboinhas, Niterói, RJ), possui mais riqueza do que 6 bilhões e 930 milhões de pessoas. Faz parte da fatia correspondente a um porcento da população mundial, mais rica do que os 99% restantes.
Conclusão: num planeta extremamente injusto, até as classe média e média alta são consideradas ricas. Apenas trinta e dois milhões de pessoas podem ser consideradas, de fato, ricas, sendo que 161 delas controlam cerca de 140 corporações que, por sua vez, dominam praticamente todo o sistema econômico e político do mundo. Esse é o sistema que defendemos com unhas e dentes?
A geopolítica da política externa bolivariana
Ana Maria Schenegoski, Edu Silveira de Albuquerque
Resumo
O artigo realiza uma análise geopolítica do movimento antissistêmico bolivariano, destacando especialmente a formação da ALBA enquanto sistema de alianças regionais a partir da projeção de poder da Venezuela. Assim, o referencial teórico da Análise do Sistema-Mundo, de Immanuel Wallerstein, é recontextualizado para além das categorias de centro, periferia e semiperiferia, e de forma a englobar os projetos de poder nacional de atores periféricos ou semiperiféricos como a Venezuela.
Recomendação de leitura: Geopolítica do Atlântico Sul na Era do Pré-Sal: desafios e perspectivas para o planejamento da defesa da soberania das águas jurisdicionais brasileiras Por Lucas Kerr de Oliveira...
RESUMO Este artigo analisa as implicações da descoberta e início da extração de petróleo do Pré-Sal para a percepção de ameaça por parte do Brasil, analisando em que medida este processo tem resultado em mudanças na estratégia brasileira de segurança e defesa. Dentre as consequências analisadas, destacam-se as variáveis relacionadas a diferentes padrões de mudanças de percepção de ameaça por parte do Brasil e que estão influenciando processos de mudanças de dois níveis: (I) respostas de modernização da Estratégia de Segurança e Defesa do Brasil, relacionada a mudanças no planejamento do conjunto dos processos de modernização das Forças Armadas; (II) respostas no nível Regional, ou seja, no contexto da América do Sul e áreas adjacentes do Atlântico Sul, que apresentam implicações como a exigência de uma crescente coordenação da Política Externa brasileira com a Política de Segurança e Defesa, visando a ampliação da cooperação e a estabilidade regional na América do Sul e no Atlântico Sul. Para avaliar o tipo de mudanças identificadas buscou-se comparar a atual estratégia de segurança e defesa com as estratégias adotadas pelo Brasil nas últimas décadas, utilizando-se dos documentos emitidos pelo governo do Brasil, principalmente pelo Ministério da Defesa e da análise da bibliografia especializada. Procurou-se também identificar em que medida a demanda de modernização das forças armadas para viabilizar a defesa da soberania das águas jurisdicionais que incluem o Pré-Sal, tem sido planejado de forma a produzir sinergia com a necessidade de atender aos múltiplos desafios que o Brasil enfrenta na atualidade, como a defesa da soberania do seu território, da Amazônia brasileira e, no plano regional, a capacidade do país de vir a assegurar a Integração Sul-Americana e a estabilidade no Atlântico Sul. Link para acessar o texto da sua apresentação no 4º Encontro Nacional da Associação Brasileira de Relações Internacionais, entre os dias 22 e 26 de julho de 2013, em Belo Horizonte, Minas Gerais:
Marcado para cair
Desavenças entre João Goulart e a cúpula das Forças Armadas e o medo de o Brasil virar comunista prepararam o terreno para o golpe. Jango selou seu destino ao recorrer às massas e aos militares de baixa patente para aprovar suas reformas de base
31/03/2014 | 00:15 | Euclides Lucas Garcia, reportagem
João Goulart, o Jango, era carta marcada pelas Forças Armadas e pela direita conservadora desde 1953, quando foi ministro do Trabalho de Getúlio Vargas. Em meio a pesadas greves, deu acesso livre para os sindicatos ao gabinete ministerial e aumentou o salário mínimo em 100%. Desagradou aos empresários. E também aos militares de alta patente, pois o piso salarial do país seria muito superior ao soldo dos praças, o que poderia causar revolta nos quartéis. Diante da pressão, Jango acabou demitido por Vargas. Mas, para os conservadores, Goulart ficou com a pecha de comunista. “Era época da Guerra Fria. Socialização, reformas sociais, medidas em favor do trabalhador eram fantasmas”, explica Marion Brephol, professora de História Contemporânea da UFPR.
A demissão não impediu que fosse eleito e reeleito vice-presidente, em 1955 e 1960 – primeiro de Juscelino Kubitschek e depois de Jânio Quadros. Na época, era possível votar separadamente para os dois cargos, uma aberração para os padrões atuais. Eleitos por chapas opostas, Jânio e Jango logo romperam e deram início a um caos político, que se somou à profunda crise econômica vivida no país. Numa tentativa de autogolpe, Jânio renunciou, com a certeza de que voltaria nos braços do povo. O estratagema deu errado e a renúncia foi imediatamente aceita pelo Congresso.
Acima Antonio Carlos Ferreira: “Os comunas vão dar o golpe. Era o que todo mundo dizia”. No alto Ainda no poder, Jango passa em revista às tropas
João Goulart, presidente da República entre 1961 e 1964
Reformas de base
Veja as mudanças estruturais no país propostas por Jango. Algumas delas ainda hoje causariam forte reação contrária.
• Tributária
Pretendia aumentar a arrecadação do Estado. Também limitaria em 10% a remessa de lucros para o exterior.
• Agrária
Pretendia promover a “democratização” não só de terras inexploradas, mas também das exploradas. Também estendia aos trabalhadores rurais os principais direitos dos urbanos.
• Urbana
Defendia “a justa utilização do solo urbano”.
• Eleitoral
Estenderia o direito de voto aos analfabetos e permitiria que militares de baixa patente exercessem mandatos parlamentares. Previa ainda a legalização do PCB (Partido Comunista Brasileiro).
• Educacional
Propunha a valorização do ensino público e o combate ao analfabetismo por meio do Método Paulo Freire. Também extinguia a cátedra vitalícia nas universidades.
• Bancária
Tinha o objetivo de ampliar o acesso ao crédito.
Fonte: Instituto João Goulart.
Naquele momento, agosto de 1961, Jango estava em viagem à China comunista. Como já carregava o rótulo de esquerdista, os militares se opuseram à posse dele. Durante a viagem de volta ao Brasil, Goulart tentou ganhar tempo até um acordo político ser costurado. Para isso, fez escalas em diversas cidades fora do país. Os políticos chegaram a um meio termo: Jango tomou posse, mas sob um regime parlamentarista, em que o primeiro-ministro escolhido foi Tancredo Neves.
Logo, porém, ficou claro que o parlamentarismo estava longe de ser a solução para os problemas do país. Aproveitando-se disso e do crescimento da bancada do PTB (partido de Jango) nas eleições de 1962, ele convocou um ano depois um plebiscito que devolveu o país ao presidencialismo. A partir daí, Jango passou a contar com plenos poderes. Mas a nação estava mergulhada na ressaca dos “50 anos em 5” de JK: corrupção em todos os níveis, inflação aproximando-se dos três dígitos, déficit acentuado na balança comercial e dívida externa explodindo. Confrontado com esse cenário, Jango apontou seu governo na direção da plataforma das esquerdas, por meio das reformas de base. E aí começou a selar seu destino.
Uma das primeiras medidas que tomou foi limitar em 10% as remessas de lucros das multinacionais para o exterior. O ápice, porém, se deu em 13 de março de 1964, no Rio de Janeiro, naquele que ficou conhecido como o Comício da Central do Brasil. Para um público de quase 200 mil pessoas, Jango assinou dois decretos: um nacionalizava refinarias privadas de petróleo e o outro desapropriava 20 quilômetros de terras subutilizadas ao lado de rodovias. No discurso, o presidente defendeu ainda mudanças profundas na Constituição por meio de seis reformas estruturais (veja quadro). Essas propostas, porém, encontravam forte resistência do Congresso e de expressiva parcela conservadora da sociedade.
Como resultado, Jango perdeu sustentação no Congresso. Em vez de negociar com os parlamentares, radicalizou: recorreu às massas e a organizações da esquerda que defendiam as reformas “na lei ou na marra”. Era do que os adversários necessitavam para acusá-lo de estar preparando um golpe, que supostamente ocorreria em 1.º de maio e se daria por meio do fechamento do Congresso para implantar à força as mudanças que pretendia. “Em política, as coisas não precisam ser verdadeiras. A imagem, a percepção, o medo conduzem ao que se costuma chamar de reação antecipada”, explica o cientista político Adriano Codato, da UFPR. “Foi o que ocorreu devido ao fantasma em torno do Jango e que os militares chamam de contrarrevolução preventiva.”
Jango negou a acusação de que daria um golpe por diversas vezes, mas aliados davam a entender que ele tinha essa intenção. O comunista Luiz Carlos Prestes, por exemplo, defendeu em entrevistas a reeleição de Jango, o que não era permitido pela legislação da época.
Marcha da Família
A resposta a Jango veio em 19 de março de 1964, Dia de São José, o padroeiro da família. Assustadas diante do risco de “comunização” do Brasil, 500 mil pessoas saíram às ruas do centro de São Paulo na Marcha da Família com Deus pela Liberdade. Lado a lado, estavam patroas, empregadas domésticas, empresários, políticos, religiosos. “Os comunas vão dar o golpe. Era o que todo mundo dizia”, conta o advogado Antonio Carlos Ferreira, à época estudante de Direito da USP. Ele e mais dezenas de pessoas trabalharam durante meses para organizar a marcha. “O povo já não aguentava mais, estava cheio. A inflação estava altíssima, a desorganização do Estado era muito grande, nada funcionava direito.” A manifestação escancarou publicamente o apoio civil de que os militares precisavam para tirar Jango do poder.
Seis dias depois, o presidente deu mais um motivo para o alto comando militar decidir-se pelo golpe: aproximou-se dos praças das Forças Armadas. Em 25 de março, Jango reuniu-se com marinheiros e fuzileiros navais no Rio para defender melhores condições de trabalho nas Forças Armadas e também as reformas de base. Propôs ainda anistia aos militares insubmissos. “Era a morte da disciplina e da hierarquia. O governo estava desagregando as Forças Armadas, obviamente se preparando para o golpe”, diz José Soares Coutinho Filho, coronel da reserva do Exército. Contrariando a orientação de aliados próximos, o presidente colocou de vez a pá de cal em cima do seu mandato em 30 de março ao comparecer a uma reunião de sargentos e suboficiais da Polícia Militar, na sede do Automóvel Clube do Rio. Novamente defendeu as reformas e disse que elas não podiam mais ser adiadas.
A partir daí, os líderes das Forças Armadas ainda reticentes se aliaram aos demais e não tiveram mais dúvidas: Jango deveria cair. A aposta do presidente de governar para as massas, dando as costas a outros segmentos sociais e atores políticos, mostrou-se equivocada.
Fonte: Gazeta do Povo - 31/03/14
O escritor uruguaio Eduardo Galeano fala do destino dos países latino-americanos, faz a defesa dos ideais de esquerda e decreta: o único pecado que não deve ser cometido é o pecado contra a esperança
Por Glauco Faria e Nicolau Soares
O ano é 1996. O escritor uruguaio Eduardo Galeano estava em um encontro em Chiapas, México, com integrantes do movimento zapatista, entre os quais o próprio subcomandante Marcos. Em meio a conversas e debates, algo o perturbava. Aquele não era um dia qualquer.
No entanto, o que tirava o sossego de Galeano não eram os focos de tensão entre os rebeldes e o governo, nem algum acontecimento no cenário político internacional, mas uma partida de futebol. Tratava-se da final do torneio de futebol masculino nas Olimpíadas de Atlanta entre as seleções de Argentina e Nigéria.
Como assistir o jogo em meio à extensa programação do dia? Em um intervalo entre uma reunião e outra, o uruguaio não se conteve. Fingiu ir ao banheiro e saiu escondido para o hotel onde estava hospedado. Quando voltou, perguntaram-lhe: “Eduardo, onde estavas?”. Disfarçou e deu uma desculpa qualquer. “Nunca tive coragem de admitir que fugi para ver o jogo.”
O futebol é tema recorrente de comparações e de histórias de Galeano, que fez essa confidência à Fórum em meio à sua participação no I Festival Latino-Americano de Música Camponesa, realizado em Curitiba em novembro do ano passado. Na ocasião, o escritor falou a milhares de integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra, o MST.
O uruguaio, que conseguiu tocar milhões de leitores com o clássico As Veias Abertas da América Latina, seduz os espectadores que acompanham suas palestras. Com um português impecável e uma serenidade inabalável, recorre a histórias e parábolas para ilustrar suas contundentes críticas ao modelo neoliberal e aos rumos da esquerda e dos países do continente latino-americano. Mas em cada trecho de sua fala faz questão de deixar uma palavra de esperança e reafirmação de valores caros aos movimentos progressistas. Durante sua estada no evento, Fórum acompanhou os passos do escritor e traz abaixo os principais trechos de sua entrevista exclusiva, assim como da palestra que realizou no evento. Apesar de ser sábado e ter jogo do Brasileiro na televisão, dessa vez, Galeano não escapou.
Ser de esquerda
É difícil fazer um catálogo dos ideais de esquerda. Eu diria que são os mais ligados às idéias da liberdade, da comunhão com a natureza, da preservação da vida, não só humana, mas da vida do planeta, que é nossa casa. E é a certeza de que fazemos parte de um arco-íris de diversas cores e que o racismo está nos deixando cegos para essa maravilha que é a diversidade humana e da vida no mundo. Porque o melhor do mundo é a quantidade de mundos que ele contém. Essas seriam algumas coisas básicas.
Ocorre hoje a ressurreição dos laços solidários, não digo mortos, mas muito feridos, quebrados, a partir da imposição de uma escala de valores fundada na salvação pessoal, na idéia de que o outro é um competidor e um inimigo, não um companheiro. Que é uma ameaça e não uma promessa. Acredito, como um homem de esquerda, que alguém sempre tem alguma coisa para dizer que valha a pena escutar. Os trinta e poucos anos transcorridos desde que escrevi As Veias Abertas da América Latina indicam que alguns desses valores já não têm a força que antes tinham. Por exemplo, nos anos 70, ninguém discutia que a pobreza era filha da injustiça. Era a esquerda quem denunciava, mas ninguém discutia. O centro aprovava e a direita não discutia, calava a boca. Agora, é uma minoria que continua acreditando nisso. Para a maioria dos opinion makers, os fabricantes de opinião do mundo, a pobreza é o castigo que a ineficiência merece. Isso é uma mudança de valores radical.
Boas notícias
É muito difícil perceber que projetos e idéias são interessantes, mas eles existem. Há casos como o plebiscito da água, que me parece uma coisa digna de contágio, merece ser imitada por outros países. Mas não tenho muita esperança, porque o Uruguai já fez um outro plebiscito em 1992 sobre a privatização das empresas públicas em que 72% da população votaram contra e ninguém imitou isso, que é um exercício de democracia elementar. Quando você está tomando uma medida que vai afetar o destino de várias gerações, como é a privatização dos recursos essenciais de um país, é necessário consultar à população.
Mas além dessas coisas, que são muito concretas, palpáveis, é difícil fazer uma lista das boas notícias. Mas elas existem o tempo todo, às vezes em uma escala local que não tem a menor repercussão, mas que é verdadeira.
Efeito Lewinsky
O governador Requião, em um almoço, me dizia que nenhum jornal brasileiro publicou nenhuma linha sobre o plebiscito da água que ocorreu no Uruguai. E foi um fato muito importante, não por ter acontecido no meu país, não vou fazer patriotadas bobas, mas porque foi o primeiro país a fazer uma consulta pública sobre o uso de um recurso natural perecível como é a água. Foram 65% dos uruguaios a favor de uma emenda constitucional que garante que a água continuará sendo propriedade pública e não um negócio privado. Isso não apareceu nos jornais, não era notícia.
Há um controle mundial nos meios de comunicação que já é hora de ser quebrado. Uso como exemplo o ano de 1998, quando o mundo ficou condenado a ler, escutar e assistir, dia após dia, às notícias do romance entre o presidente do planeta e aquela gordinha voraz, Monica Lewinsky. Você tomava café da manhã com ela, almoçava com ela, jantava com ela… Um ano inteiro. Um dia, estava na Europa e abri um jornal que era pura Monica Lewinsky. E aí, perdida, havia uma notícia, na última coluna da página sete, dizendo que as três organizações ecológicas mais importantes do mundo haviam se juntado em Londres para divulgar um relatório seriíssimo que revelava que, em meio século, o mundo tinha perdido um terço de seus recursos naturais. Isso não teve a menor importância. Um terço dos recursos é fácil de dizer, mas se você pensa na dimensão desse crime gigantesco… O mundo tinha perdido em cinqüenta anos um terço de seus recursos e não tinha espaço para isso no jornal, porque estavam ocupados com a outra história.
O processo do Fórum
Percebo uma multiplicação da energia criativa na sociedade civil da América Latina a partir do primeiro FSM, um maior dinamismo. Existe uma contradição entre o tempo da história e o tempo da vida dos homens. Cada pessoa quer ver os resultados das coisas, o que é compreensível, um desejo humano. Mas a história é uma senhora que caminha devagar. É preciso ter paciência. O resultado dessa articulação de vozes não aparece em um ou nem mesmo em dez anos. Estão despertando energias que pareciam estar dormindo ou até mortas.
Essa articulação é lenta, mas imprescindível para o futuro dos movimentos sociais. Na solidão, estamos mortos. A esquerda está tentando um caminho novo, novas experiências políticas. Essas novidades aparecem em todos os setores, não só nas eleições. É interessante ver que (Hugo) Chávez, demonizadíssimo por toda a grande mídia, ganha nove eleições limpas. Estamos falando de um tirano muito especial que ganhou nove eleições – todas mais transparentes que as dos EUA. No Uruguai, a esquerda ganhou, mostrando que o trabalho rende frutos, não é só água jogada no mar. Foi um trabalho iniciado em 1971, casa por casa.
O FSM e os pequenos
Com o passar do tempo, valorizo cada vez mais as pequenas escalas, as pequenas dimensões e desconfio cada vez mais da espetacularização das grandes notícias. Eu digo isso para revelar a grandeza escondida nas coisas pequenas e denunciar a mesquinharia das coisas grandes. O Fórum Social Mundial tem essa característica do espetáculo, mas é diferente, porque é nascido da insólita e jamais vista tentativa de juntar todas essas pequenas forças desconhecidas que existiam espalhadas. Ele tem sido um grande passo adiante na direção correta de juntar os dispersos, re-vincular os desvinculados, de salvar-nos da solidão. Nesse sentido, acho que o mundo tem avançado muito, de uma maneira silenciosa, não estrepitosa, mas certa. E que não corresponde exigir resultados imediatos, pois são processos muito longos, complexos, que caminham devagar e crescem desde o pé, como pedia o cantor uruguaio e meu amigo muito querido Alfredo Zitarosa, porque senão as coisas não duram.
O Fórum abriu um grande espaço de encontro e essa é sua importância, ter conseguido que os dedos ganhassem consciência de que fora da mão não servem para nada. A ida para a Índia parece ter sido uma experiência positiva, pois abriu toda uma metade do mundo que estava meio em sombra, não aparecia muito, e permitiu a expressão de forças que estavam latentes. Mas não sei o que acontecerá. Em geral, não sou um bom profeta. Sobretudo no que mais me interessa na vida, que é o futebol (risos).
500 Anos de Solidão
A América Latina é uma região do planeta dentro da qual existem energias de mudança muito lindas e também energias do sistema colonial que vêm se perpetuando já há mais de cinco séculos e que são muito poderosas. Eles têm um poder econômico e cultural imenso e boa parte do poder político. São essas as forças que estão nos treinando desde sempre para a certeza de nossa impotência. Para a certeza de que a realidade é intocável, de que o que é, é porque foi e continuará sendo. De que amanhã é outro nome de hoje. Isso é um fatalismo herdado e tem muito tempo de vida: cinco séculos. Não é fácil lutar contra isso. Vamos inventar a vida, vamos imaginar o futuro. Vamos cometer a loucura de acreditar que essa terra pode ser outra. De que essa região nossa não está condenada pelos deuses nem pelos diabos à pena perpétua de solidão e desgraça. Mas isso não é fácil.
Elogio ou acusação
Como sempre, há essa tensão criativa entre as forças da inércia dos sistemas tradicionais e as forças novas que surgem. O problema é que às vezes as forças novas adotam os valores das que combatem sem perceber. Por exemplo, toda uma escala de valores que acredita no sucesso como uma fonte de valor. Então, essas forças de mudança começam uma corrida louca para parecer com seu inimigo, para fazer a coisa de tal maneira que seu inimigo lhe aplauda. Às vezes me dizem: “você é muito bom”. Mas eu procuro ver quem é que está falando, porque, dependendo, pode ser uma acusação gravíssima.
O pecado contra a esperança
A vitória da esquerda nas eleições uruguaias foi, para nós, um acontecimento incrível. Parece milagre. A esquerda obteve a metade mais um dos votos contra um monopólio compartilhado de dois partidos tradicionais que exerciam o poder desde a fundação dos tempos, desde Adão e Eva ou antes. Parece milagre, mas não é. É o resultado de um trabalho paciente, feito dia após dia, porta por porta, consciência após consciência. A vitória da Frente Ampla foi crescendo desde o pé. E foi celebrada numa noite inesquecível. Aquele domingo foi absolutamente inesquecível. Eu nunca tinha visto, sentido, vivido tanta alegria no meu país. Foi uma ressurreição da alegria, que parecia morta, mas estava apenas dormindo. Lá pelas quatro da manhã, o povo nas ruas, aquela explosão incessante das melhores coisas, um amigo me comentou: “Quero que essa noite não acabe nunca”.
E essa frase, que é lindíssima, não se refere só à noite da celebração, mas também a tudo que aquela noite estava encarnando, simbolizando. O que ele queria dizer verdadeiramente, mesmo sem saber, era: “Eu quero que essa alegria, essa esperança, não seja jamais traída”. Porque tinha razão o meu mestre Carlo Quijano quando, há muitos anos, comecei a fazer jornalismo ainda quase criança com ele, no semanário Marte. Ele me dizia: “Qualquer um que lhe olhe nos olhos já vê claramente sua vocação de pecado. Você é um pecador de nascença e eu não tenho nada contra. Peque sim. Mas tem um pecado que não tem redenção, que não merece perdão. É o pecado contra a esperança”. Essa é a imensa responsabilidade da esquerda em meu país. Não trair nunca essa boa energia de vida que foi vitoriosa nas eleições.
Uruguai hipotecado
O governo da Frente Ampla, que está nascendo agora, é o resultado do desenvolvimento de um movimento popular que jamais falou que iria ganhar o governo para fazer o socialismo. Seria irreal prometer isso. O que se prometeu foram coisas mais moderadas, modestas, que são as mais ou menos realizáveis, que eu espero que sejam realizáveis em um país quebrado, desesperançado como é o Uruguai. A primeira prioridade é lutar contra a pobreza. A segunda, resgatar os filhos perdidos de um país que perdeu a população jovem, condenada ao exílio econômico, expulsa pelo sistema de poder. E a terceira, vinculada com as outras duas, é buscar um desenvolvimento econômico que não contradiga a soberania nacional sobre os recursos básicos e que permita a criação de fontes de emprego. O problema do Uruguai é que o país foi convertido pela estrutura dominante em um banco. O banco quebrou e assim estamos. A esquerda recebe um país hipotecado, com compromissos de dívida externa terríveis, pesadíssimos. Esse é o drama latino-americano em geral, é uma soberania condicionada. Você é independente até um certo ponto. Porque depois, quem decide são os credores. É o resultado de viver em um estado de dívida perpétua, pagando para se endividar mais e mais.
Lula
Não pretendo explicar para o brasileiro como são as coisas aqui. Não sou de vender gelo a esquimós. Estou aqui aprendendo, perguntando. No caso do governo Lula, há uma distância entre as expectativas e a realidade. É um problema da esquerda no mundo, a perda de identidade. Ela passa a não se diferenciar do que combate. Em nome do realismo, se sacrificam alguns princípios fundamentais do movimento socialista, ou como queira chamá-lo, já que teve muitos nomes. Lembro de ver, quando era jovem, um filme dos irmãos Marx. Groucho estava conduzindo um trem e não havia mais lenha. Então, ele começou a destruir os vagões com um machado, para alimentar a caldeira. Ele conseguiu chegar até a estação, mas apenas com a locomotiva. Chegou um trem sem trem. Esse é o perigo que corre a esquerda. Não é inevitável, mas é um perigo.
Projeção internacional do Brasil
O que eu resgataria do governo de Lula é a projeção internacional, essa vontade de fazer uma frente unida dos países que vivem situações semelhantes, que têm problemas semelhantes e um destino comum a conquistar. Que têm essa urgência imediata da restauração da dignidade ferida na negociação financeira, comercial e cultural. Sem essa união, não tem possibilidade. Nenhum país tem. O Brasil pode achar que tem, pela sua dimensão imensa. Mas a situação é a mesma. Por maior que o Brasil seja, não tem a possibilidade de se salvar na solidão. Já está na hora do sul do mundo recuperar aquela energia perdida dos velhos tempos, há 40, 50 anos, quando se faziam aquelas conferências do Terceiro Mundo, que era um mundo independente dos dois blocos, capitalista e comunista. Era a emergência de uma terceira possibilidade e chegou a ter muita força, mas depois se perdeu na névoa do tempo. E também os organismos que existiam para defender o preço dos produtos básicos, que morreram todos, exceto a OPEP. Já é hora de acabar com a impunidade dos poderosos nos grandes mercados, financeiros e comerciais, e no panorama cultural mundial também. Eles são os donos de nossos sonhos, de nossas opiniões, das informações que recebemos ou não, de acordo com a vontade de quem manda. Já é hora de recuperar isso tudo.
União é a chave
Para poder fazer frente a essa negação da esperança, é preciso concretizar uma política conjunta do Uruguai com o Brasil e a Argentina. Aí está a chave de tudo. Cito esses dois porque, no caso do Uruguai, são os vizinhos mais diretos, mas deveria envolver toda a área do cone sul. Fazer uma política conjunta do Mercosul ampliado, como for possível. A idéia de que você pode se salvar sozinho não tem mais nenhuma relação com a realidade dos dias de hoje. Sozinhos, estamos fritos. A solidão nos condena ao fracasso.
Os EUA e o medo
A propósito das outras eleições, que aconteceram dois dias depois das nossas, em um outro país, um pouco maior que o Uruguai, e que ocupa um pouco mais de espaço na mídia universal, elas consagraram o presidente do planeta, senhor George W. Bush. Na eleição do Uruguai, que não teve nenhuma repercussão neste mundo que confunde a grandeza com o tamanho grande dos países e das pessoas, foi uma vitória contra o medo. Na campanha política, a direita tentou aterrorizar a população dizendo que a Frente Ampla era uma conjunção de forças dirigida por tupamaros, seqüestradores, estupradores, ladrões e assassinos. Eu vi pela televisão o discurso final do vice-presidente do partido Colorado, que é o partido do governo atual. Ele lançou uma terrível advertência: se a esquerda ganhar, todos os uruguaios seriam obrigados a se vestir iguaizinhos, como os chineses na época do Mao.
Sobre o plebiscito das águas, também uma campanha de terror, anunciando o pior. Águas envenenadas, sujeira, cheiro fétido, o fim dos esgotos, um panorama terrível, apocalíptico. E o pessoal não deu bola, a população votou contra o medo. Acho que nas eleições dos EUA o medo ganhou. Uns dias antes das eleições, as pesquisas apontavam uma preocupante paridade entre Bush e Kerry. E aí, apareceu, não sei como, deve ser a divina providência, esse personagem que parece tirado do carnaval uruguaio, com aquela barba longa, que responde pelo nome de Bin Laden. Ele aparece para assustar o mundo anunciando que vai comer todos os nenês crus, que vai fazer todos os desastres. Dois apocalipses, três apocalipses, quinze mil torres de Nova York. Magnificamente, Bush subiu quatro pontos em um dia só nas pesquisas de opinião graças à ajuda proporcionada por esse que me parece um chefe de boy-scout (escoteiro). O lema do boy-scout é always ready, ou sempre alerta. Ele está sempre pronto. Acode cada vez que o sistema do medo necessita do grande assustador, esse alto funcionário da ditadura universal do medo.
O medo é importantíssimo não só porque pode eleger um presidente, como aconteceu aí com essa extorsão contínua, essa histeria do terrorismo que avança, das forças do mal, o Diabo que está aí perto, cheirando a enxofre, com chifre e rabo. Mas também para o poder militar. Que seria desta estrutura militar que hoje manda no mundo, dos 2,5 bilhões de dólares que são a cada dia destinados à indústria da morte, às despesas militares, sem o medo? Se não houvesse pessoas ou máquinas, como fabricar os demônios para justificar a existência da estrutura militar? E a mesma coisa em relação à mídia. O medo vende muito bem.
Tecelão
Meu último livro se chama Bocas do Tempo e são textos curtos, num estilo levemente parecido com o do Livro dos Abraços. São 333 histórias, mas isso não foi deliberado, foi o número que encontrei quando fiz o índice. É um número bom, dá sorte. Mas uma quantidade imensa de histórias ficou fora, porque quem escreve, tece. A palavra texto vem do latim textum, que significa tecido. Ou seja, quem escreve está tecendo, é um trabalho têxtil. Você trabalha com fios e cores, que são as palavras, as frases, os relatos. Eles vão se encontrando e há alguns fios que são lindíssimos, mas que não coincidem, não combinam. Então, com dor na alma, ficam de fora.
Foram oito anos de trabalho para esse livro, umas histórias simples, mas que de simples não tem nada. Quanto maior é a sensação que o leitor percebe de transparência, mais complicado é o trabalho que essa aparente simplicidade contém. Para mim, escrever é uma força enorme. E me dá uma alegria imensa também. No fim, quando consigo sentir que essas palavras são bastante parecidas com o desejo de dizer, fico com a certeza de que a condição para não ser mudo é não ser surdo. Ou seja, só é capaz de dizer quem é capaz de escutar. Sou um caçador de vozes e histórias. É a realidade que me conta as coisas que acho que vale a pena que sejam contagiadas.
Abraçado aos vencidos
Não sou um homem que tem ídolos, não idolatro ninguém. O mais próximo que tenho de um ídolo é um jogador de futebol, um cara que me acompanha quando escrevo, já que tenho um pôster dele no meu escritório. Era um inimigo, pois jogou no Peñarol e sou torcedor do Nacional. Fui conquistado por ele, pelo que fazia e por sua personalidade.
Seu nome era Obdulio Varela e foi o herói de um episódio que os brasileiros chamam, com certo exagero, de “nosso Hiroshima”, a final da Copa de 50, quando o Uruguai ganhou, contra todas as possibilidades, do Brasil. Após a partida, os jogadores foram festejar essa impossibilidade. Mas ele fugiu do hotel e foi beber em um boteco do Rio.
Ele me disse que o que havia nas arquibancadas era uma besta, um monstro de 200 mil cabeças. “Eu os odiava”, contou. Depois, tomou uma, duas, três cervejas e via as pessoas, uma a uma, tristes, chorando. E pensou: “Como eu fiz isso com essa gente tão boa?”. E todos atribuíam a vitória a ele, “foi o Obdulio”, diziam. Por isso o admiro, ele não se acusou, não comemorou e passou a noite inteira abraçado aos vencidos.
Muito antes de analisarmos as instituições políticas – governos e partidos políticos –, que na democracia são os instrumentos de exercício do poder, é preciso reconhecer que esses governos e partidos são sustentados por recursos, valores e uma cultura profundamente arraigada na sociedade.... Quando os imigrantes são criminalizados, a pena de morte é defendida, as discriminações de todo tipo – raciais, religiosas, de gênero, por exemplo – reafirmam desigualdades, a sociedade mostra sua cultura autoritária e excludente. Mas seria injusto atribuir a toda a sociedade esse mesmo comportamento, como se ela fosse homogênea, feita de iguais. Na realidade, é sempre uma sociedade em disputa, na qual há oprimidos e opressores. E esses opressores se valem de numerosos instrumentos para difundir seus valores e ganhar a adesão das maiorias. Isso se chama ideologia: a narrativa dos opressores que justifica e legitima a opressão. A escola, as igrejas, a televisão, o cinema e os jornais atuam sobre a opinião pública reconstruindo a todo momento a narrativa dos poderosos, criando novas versões para reafirmar seus valores e interpretar o que vivemos. Quando os poderosos do momento são os bancos, os donos do capital, esse discurso assume os valores do capitalismo financeiro e passa a exaltar a disputa, o egoísmo, o individualismo, o desejo de acumular sem limites, a destruição do concorrente, a vitória sobre os demais. Uma proposta de vida que é um estado de guerra permanente. Nesse caldo de cultura, se podemos chamar assim, é que se exercem os pequenos e os grandes poderes; as relações assimétricas que ocorrem na família, no trabalho, nos espaços públicos, recriando sociedades autoritárias, hierárquicas, centralistas, verticais. E nessa condição de convivência humana, o instrumento de defesa das maiorias é a democracia, por meio de instrumentos públicos de regulação e controle dos interesses privados. Mas mesmo a democracia é desafiada e, na maior parte dos casos, submetida aos interesses dos poderosos. Reconquistar a liberdade, a autonomia e a capacidade de decidir sobre a vida cotidiana e os destinos da coletividade é enfrentar esses pequenos e grandes poderes. Isso significa disputar no dia a dia os sentidos da democracia. Editorial de Silvio Caccia Bava, Diretor e editor-chefe do Le Monde Diplomatique Brasil, para o Dossiê 10: Quem Manda no Mundo. Para saber mais acesse: https://www.diplomatique.org.br/edicoes_especiais_det.php?id=10 Fonte do mapa:http://elordenmundial.com/relaciones-internacionales/cambio-orden-economico/Ver mais
O jogo de 'morde e assopra' da Rússia com a Ucrânia
Dmitri Trenin
Especial para a BBC*
Presidente ucraniano, Viktor Yanukovych, recebeu propostas de incentivos da Rússia
Para o presidente da Rússia, Vladimir Putin, relações internacionais significam competição, que se intensifica a cada dia. A relação com a Ucrânia não deixaria de ser diferente.
Putin reiterou esses principais no discurso do Estado da Nação, na semana passada. Os principais competidores são “grandes unidades geopolíticas”: os Estados Unidos, a China e a Europa, ainda que os europeus não tenham uma estratégica unificada.
Para ganhar competitividade, a Rússia precisa expandir seu poder, criando uma união econômica, política e militar na Eurásia.
Segundo Putin, a Rússia não é apenas uma unidade estratégica. Também teria uma civilização à parte, que compartilha com outros países, como a Ucrânia e Belarus. Essa civilização é cristã e europeia, mas não é uma simples extensão da Europa Ocidental ou da União Europeia. Pelo contrário, quer ser tratada como entidade em pé de igualdade.
Velhos aliados soviéticos
A crise mundial fez Putin relançar o já atrasado projeto de integração econômica da Eurásia.
Em 2009, Moscou começou a trabalhar seriamente com uma união aduaneira com Belarus e o Cazaquistão. Em 2012, a união se aprofundou, colocando os três países em um espaço econômico único. O objetivo agora é o estabelecimento da União Econômica Eurasiana, em 2015.
Outros duas ex-repúblicas soviéticas, a Armênia e o Quirguistão, já se candidataram a ser membros da união. Mas é a Ucrânia, com 46 milhões de habitantes e a segunda economia da região (atrás dos russos), o país que realmente faria diferença no projeto de Putin.
Rússia faz aceno bilionário à Ucrânia
O presidente da Ucrânia, Viktor Yanukovych, esteve nesta terça-feira na Rússia, onde encontrou o colega Vladimir Putin.
Os dois assinaram vários acordos. A Rússia ofereceu um desconto de quase um terço no preço do gás e se disse disposta a comprar bilhões de dólares em titulos ucranianos.
Os dois presidentes negaram ter discutido a união aduaneira entre os dois países, que substituiria a integração com a Europa.
Em Kiev, a oposição pediu mais detalhes sobre o encontro e querem saber exatamente o que Yanukovych ofereceu em troca da generosidade russa.
Diferente do senso comum, Putin não impôs sanções. Ele oferece grandes incentivos ao presidente da Ucrânia, Viktor Yanukovych: gás a preço barato, cooperação em grandes projetos industriais e crédito barato. Ele também apelou à unidade dos povos eslavos, a maioria cristãos-ortodoxos, e ao papel proeminente dos ucranianos no império russo e na União Soviética.
Basicamente, Putin convidou todo mundo a entrar no mesmo barco com a Rússia novamente.
A questão é que toda a elite da Ucrânia tem um projeto puramente nacional, que vê a Ucrânia independente da Rússia, sobretudo.
Mesmo o presidente Yanukovych e o primeiro-ministro Mykola Azarov, além dos magnatas do leste da Ucrânia, região onde se fala o russo, não querem ouvir falar de integração. Eles não se importam com acordos comerciais, mas uma integração os deixaria sem poder.
O Partido das Regiões, do governo, prefere o status quo. Mas a maioria da população, e da oposição, quer ir em direção à União Europeia.
Kiev então anunciou sua intenção de assinar um acordo de associação e de livre comércio com a União Europeia, ainda que mantendo seus laços comerciais com a Rússia.
Músculo russo
Percebendo que Kiev queria tomar as próprias decisões, Putin deixou claro que os ucranianos teriam de fazer uma escolha. Ele também fez questão de mostrar à Ucrânia os custos de se voltar à Europa.
A insperação sanitária russa achou problema com os doces da Ucrânia e a alfândega passou a segurar por mais tempo as mercadorias ucranianas na fronteira. A gigante russa Gazprom fez questão de lembrar da dívida ucraniana.
A estrategia russa parece ter surtido efeito, com a decisão de Yanukovych de suspender as negociações com a União Europeia. Mas os protestos em Kiev acabaram pondo as coisas em outra direção.
Moscou também está genuinamente irritada com a União Europeia, com o que considera com uma interferência na Ucrânia.
Se a Ucrânia pender para a Rússia, Moscou terá de gastar bilhões para ajudar as contas de Kiev e para dar competitividade à sua indústria ineficiente.
Ainda que a Ucrânia consiga uma posição privilegiada na União Eurasiana, os protestos mostram que os ucranianos vão continuar tentando escapar da órbita russa.
Por outro lado, se a União Europeia ajudar a Ucrânia a ser tornar mais moderna, ainda que a um algo custo para os dois lados, a Rússia seria indiretamente beneficiária.
Nesse caso, a Ucrânia seria um vizinho previsível e com melhor ambiente para negócios - sem pagar um único rublo. Se essa for a opção, será uma perda no curto prazo para Putin e um ganho de longo prazo para a Rússia.
*Dmitri Trenin é diretor do Carnegie Moscow Centre, em Washington, e analista das relações internacionais da Rússia
Privatização de tudo' gerou protestos, que vão continuar
20.11.2013
Folha de S.Paulo | Poder
Eleonora de Lucena entrevista David Harvey
GEÓGRAFO DIZ QUE A CRISE MUNDIAL AMPLIOU A CONCENTRAÇÃO DA RIQUEZA E CRITICA GASTOS DO BRASIL COM COPA E OLIMPÍADA
O projeto neoliberal é privatizar e transformar tudo em mercadoria. No seu fracasso em realizar promessas de eficiência estão as raízes dos protestos que eclodem pelo mundo e no Brasil. Partidos convencionais, reféns do capital internacional, não conseguem canalizar a raiva das ruas. Não há ideias novas, e as manifestações vão continuar.
A análise é do geógrafo marxista britânico David Harvey, 78. Professor da Universidade da Cidade de Nova York, ele ataca os "oligarcas globais" e afirma que os bilionários foram os que mais ganharam com a crise.
Crítico de megaeventos como Copa e Olimpíada, ele diz que os governos são muito influenciados pelo capital financeiro: "Esses eventos são sobre a acumulação de capital através de desenvolvimento de infraestrutura. Os pobres tendem a sofrer, e os ricos tendem a ficar mais ricos".
A partir de sexta Harvey irá a debates no Brasil sobre o lançamento de seu livro Os limites do capital e da coletânea Cidades Rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil.
Qual sua avaliação sobre a situação mundial? É muito mutante e volátil. Está tão perigosa quanto sempre foi. O que me surpreende é que não há novas ideias. As receitas propostas aprofundam o modelo neoliberal ou tentam desenvolver alguma forma de keynesianismo. Ambas opções me parecem muito frágeis.
O sr. disse à Folha em 2012 que a crise deveria aprofundar a concentração de capital e as desigualdades. Isso ocorreu? Sim. Todos os dados mostram que o número de bilionários cresceu no mundo. Foi o grupo que melhor se saiu melhor na crise, enquanto todos os outros ou permaneceram estagnados ou perderam. O crescimento principal está sendo canalizado para o 1% mais rico da população mundial. É preciso haver uma redistribuição de renda globalmente e entre classes. O clube dos bilionários é que é o problema. Oligarcas globais controlam potencialmente ¾ da economia global. Meu ponto é: vamos para crescimento zero, sem canalizar o crescimento para eles e, ao mesmo tempo, devemos fazer uma redistribuição.
Nesse cenário haveria uma guerra, não? Olhando para o que está acontecendo nas ruas se pode pensar que esse tipo de coisa não está tão longe assim.
Qual sua visão dos protestos pelo mundo? O sr. defendeu a criação de um "partido da indignação" para lutar contra o "partido de Wall Street". Como essa ideia evoluiu? Os movimentos não estão indo muito bem. O poder político se moveu rapidamente para tentar reprimir os protestos. Há também muitas divisões entre os movimentos. Sobre o futuro, é muito difícil prever. A situação é muito volátil para os movimentos.
E sobre os protestos no Brasil? Existe uma desilusão generalizada do processo político. As pessoas estão começando a discutir como modificar os piores aspectos da exploração capitalista. Há também uma alienação, que leva a alguma passividade, que é interrompida ocasionalmente por explosões de raiva. O nível de frustração por todo o mundo está muito alto agora. Não surpreende que essas manifestações ocorram. O problema é canalizar essa raiva para movimentos políticos que tenham um projeto. Prevejo mais explosões de raiva nos próximos anos – no Egito, na Suécia, no Brasil etc.
Há conexão entre esses movimentos? Sim, cada um tem suas demandas específicas, mas há problemas de base provocados pela natureza autocrática do neoliberalismo, que virou um padrão para o comportamento político. Ele não é satisfatório para a massa da população e fracassou em entregar o que prometeu. Há uma crise na governança democrática e uma raiva contra as formas tomadas pelo capitalismo. No norte da África os protestos foram parcialmente sobre a alta nos preços da comida. Isso diz respeito ao poder do agronegócio e à especulação com as commodities, causas da alta dos preços.
No Brasil os protestos estouraram por causa da alta nas tarifas de ônibus. Como especialista em questões urbanas, como o sr. avalia o problema? O projeto neoliberal é privatizar e transformar tudo em mercadoria. Tudo vira objeto das forças do mercado. Dizem que essa é a forma mais eficiente de prover bens e serviços para uma população. Mas, na verdade, é uma maneira muito eficiente de um grupo da população reunir uma grande soma de riqueza às custas de outro grupo da população – sem entregar, de fato, bens e serviços (transporte, comida, casas etc.). Essa é uma das razões do descontentamento da população. Por isso, explodem manifestações de raiva em diferentes lugares e em diferentes direções políticas. Há uma situação de fundo que dá uma visão comum às batalhas, embora cada uma delas seja específica e diferente. No Brasil foi o custo do transporte. Em outros lugares é preço da comida, da habitação etc.
Em São Paulo há também a discussão sobre o aumento do imposto sobre propriedade urbana. Isso também evidencia uma luta social? Vamos chamar de luta de classes. Ela está mais evidente, mas muitas pessoas não gostam de falar sobre isso.
Partidos tradicionais foram pegos de surpresa no Brasil. Mas os movimentos não têm organização própria. Como isso pode se transformar em forças políticas organizadas? Se eu tivesse essa resposta, não estaria falando com você agora. Estaria lá fora fazendo. A situação agora reflete a alienação das pessoas em relação a praticamente todos os partidos políticos e a sua desilusão com o processo político. Nos EUA, o Congresso tem uma taxa de aprovação de 10%. Nessa circunstância, as pessoas não vão canalizar o seu descontentamento para o processo político, pois não enxergam esperança nisso. Por isso, há essa raiva. E assim as coisas vão continuar.
O sr. concorda com a visão de que partidos de todos os matizes caminharam para a direita e que a esquerda se diluiu em ONGs e estruturas voláteis? Há internacionalmente uma ortodoxia econômica, que é reforçada pelos movimentos do capital internacional. Os partidos políticos convencionais se tornaram reféns desse poder.
Isso acontece com o PT? Isso é para o julgamento de seus leitores. Noto que há uma desilusão sobre o PT entre seus próprios integrantes.
O sr. está escrevendo um livro sobre as contradições do capitalismo. Qual é a principal? Estão mais restritas as condições que o capital tem para crescer. É muito difícil achar novos lugares para ir e novas atividades produtivas que possam absorver a enorme quantidade de capital que está buscando atividades lucrativas. Em consequência muito capital vai para atividades especulativas, patrimônio, compra de terras, commodities. Criam-se bolhas.
O sr. escreveu que é cada vez mais difícil encontrar o inimigo. Quem é o inimigo? O inimigo é um processo, não uma pessoa. É um processo de circulação de capital que entra e sai de países. Quando decide entrar, há um "boom"; quando decide sair, há uma depressão. Por isso é necessário controlar esse processo de circulação. O Brasil tem possibilidades limitadas, porque o capital pode simplesmente desaparecer.
No início o Brasil parecia estar indo bem na crise. Agora estamos travados. O que deu errado? Houve mudanças modestas no Brasil no sentido de redistribuir renda, como o Bolsa Família. Mas é necessário fazer muito mais. Muito dos gastos em enormes projetos de infraestrutura ligados à Copa do Mundo e à Olimpíada são uma perda de dinheiro e de recursos. As pessoas se perguntam por que o país está fazendo todos esses investimentos para a Fifa ter um grande lucro. Para o resto do mundo é surpreendente ver brasileiros se revoltando contra novos estádios de futebol.
Copa e Olimpíada não fazem bem para o país? A Grécia está em dificuldades em parte por causa do que foi feito em razão da Olimpíada de Atenas. Muitas cidades olímpicas nos EUA entraram em dificuldades financeiras.
Como o sr. explica o poder da Fifa e do COI? É como qualquer poder monopolista: extrai o máximo do que se tem a oferecer. Os governos são muito influenciados pelo capital financeiro. Esses eventos são sobre a acumulação de capital através de desenvolvimento de infraestrutura, de urbanização. Envolvem também despossuir pessoas, removendo-as de suas residências para abrir espaço aos megaprojetos. Os pobres tendem a sofrer, e os ricos tendem a ficar mais ricos.
Como o sr. analisa a situação política na America Latina? Politicamente houve, na superfície, um tipo de política antineoliberal. Mas não houve nenhum verdadeiro grande desafio para o grande capital. Há discursos anti-FMI. Mas, de outro lado, o Brasil está ofertando a exploração de seu petróleo para empresas estrangeiras, por exemplo. Não é profunda a tentativa de ir realmente contra as fundações do capitalismo neoliberal. É uma política antiliberal só na superfície, na retórica. Mas há alguns elementos, como o Bolsa Família, que não fazem parte da lógica neoliberal. Mesmo a Venezuela não vai muito longe em realmente desafiar os interesses do capital.
Os EUA não perderam posições na região? Os EUA estão mais fracos na América Latina, em parte porque o crescimento da região foi mais orientado para a o comércio com a China, que ampliou o seu papel imensamente. De muitas formas, a economia na América Latina é muito mais sensível ao que ocorre na economia chinesa do que na norte-americana.
Ao assistir o documentário os brasileiros precisam acordar para a possibilidade de sermos vítimas de uma revolução "delivery", planejada por consultores estrangeiros interessados em desestabilizar o país.
Ilhas Malvinas abraçam Reino Unido e dizem não à Argentina
Movimentação na capital do arquipélago lembra os 30 anos do conflito entre ingleses e argentinos pelo domínio do território
As casas em Stanley, a capital do arquipélago das Malvinas, estão decoradas com as bandeiras das Falklands e do Reino Unido; os carros, pintados com a Union Jack (bandeira britânica). A cidade nunca esteve tão movimentada.
Os dois únicos hotéis — Malvina House e Waterfront, onde funcionam também os dois únicos restaurantes — andam com a lotação máxima. Com gente que busca um lugar na aguardada indústria petrolífera que surge nas ilhas, com veteranos de Reino Unido e Argentina que lutaram a guerra pelo domínio do arquipélago há 30 anos e com jornalistas, muitos jornalistas.
O governador Nigel Haywood diz que o Reino Unido defende o direito dos habitantes das Ilhas Malvinas à autodeterminação: escolher se querem continuar sendo um território britânico além-mar (elas não são chamadas de colônia) ou se preferem ser independentes.
Segundo ele, potências regionais como o Brasil “precisam perceber” que, ao reivindicar a soberania sobre as Malvinas, é a presidente argentina Cristina Kirchner quem, na verdade, fere o estatuto de descolonização das Nações Unidas, “querendo estabelecer aqui uma colônia argentina contra a vontade do povo”.
Há um ressentimento com o fato de o Brasil apoiar as demandas argentinas sem conhecer a realidade do arquipélago.
Descolonização
“Acho que há dois motivos. O primeiro é o fato de a América Latina ter passado quase que simultaneamente por um processo de descolonização contra a Europa no século 19, o que fez seus países questionarem se é justo haver um vizinho fazendo parte da Europa. O segundo é esta atual tendência de formação de blocos regionais”, avalia Haywood.
Gastos
Ilhas se mantêm sem ajuda externa
O PIB das Malvinas é de cerca de R$ 306 milhões ao ano, e o governo se sustenta e mantém seu superávit com este dinheiro, “sem receber nem dar um tostão ao Reino Unido”, diz Dick Sawle, um dos oito integrantes da Assembleia Legislativa, eleita pelo povo a cada quatro anos. Sessenta por cento dos recursos vêm da pesca, e o restante do turismo e da agricultura.
Para que os produtos, a maior parte importada do Reino Unido, não cheguem a preços tão mais caros ao consumidor , o governo aboliu uma série de impostos, “as nossas reservas permitem isso”, afirma Sawle.
Dos oito deputados, cinco são de Stanley e três do camp (campo, terras fora da capital). Há ainda uma Câmara superior com três integrantes equivalente à dos Lordes inglesa, escolhida pelos oito deputados.
A autoridade máxima britânica nas ilhas é o governador Nigel Haywood, que vive numa linda casa vitoriana cujas salas são repletas de quadros da realeza britânica. As portas, como a de todas as casas e os carros de Stanley, ficam abertas e, para passar por elas, basta ser convidado. A criminalidade é quase zero e só oito policiais patrulham as ruas.
“Há um ou outro caso de agressão de bêbados a moças, uma ou outra batida de carro. Nisso somos bem diferentes dos britânicos e dos sul-americanos. Aqui tudo acontece numa escala muito, muito menor”, diz o policial Richard Moorhouse.
Culpa não apenas da efeméride, alegam todos, mas sim do fortalecimento do discurso do governo argentino de Cristina Kirchner sobre a necessidade de se voltar a discutir a soberania sobre as Malvinas.
Os 3 mil moradores do arquipélago — 2,7 mil vivem em Stanley e os outros 300 vivem no campo — estão tensos e não escondem de que lado estão. “Somos britânicos, estamos aqui há pelo menos nove gerações. A população descende dos colonos que vieram do Reino Unido, há somente duas famílias de argentinos vivendo aqui. Se os argentinos nos invadirem novamente, mandaremos eles para o espaço”, diz Patrick Watts, único locutor de rádio no momento da invasão argentina a Stanley, em 2 de abril de 1982. “De repente [há 20 anos], passei a ter um chefe militar.”
Watts traduzia para o inglês o que o militar argentino mandava. Eram mensagens do tipo: “A partir de agora há toque de recolher, haverá apagões para pouparmos energia, dirigiremos do lado direito da estrada e o peso substituirá a libra como moeda oficial”.
“Foi muito difícil, acho que os argentinos achavam que seriam bem recebidos porque, na verdade, éramos dominados pelo Reino Unido contra a nossa vontade e ansiávamos em fazer parte da Argentina. Mas, quando chegaram aqui, perceberam que tudo era diferente. Ninguém falava espanhol e nem sabia direito onde ficava Buenos Aires; campos minados foram deixados para trás”, conta Veronica Fowler, professora, referindo-se às cerca de 20 mil minas terrestres que ainda existem ao redor da capital, e que somente agora, 30 anos depois, começam a ser desativadas.
As palavras e o sentimento anti-Argentina de Patrick e Veronica ecoam entre os kelpers, apelido dos nativos das ilhas, cuja população é uma mistura de imigrantes britânicos, estabelecidos antes ou principalmente após 1982 — a economia cresceu muito depois da guerra — e os descendentes dos colonos que chegaram no século 19 ou até antes.
Nos últimos anos, as ilhas receberam cerca de 300 chilenos para trabalhar principalmente nos setores de construção e serviços. As duas famílias argentinas costumam ser reclusas e não gostam de receber a imprensa.
“Mas escreve aí: somos um povo simpático e hospitaleiro, não temos nada contra os argentinos, o que tememos é o governo de Cristina Kirchner”, diz Lyn Buckland, kelper que, assim como todos, tem passaporte britânico.
Basta alguns minutos no Victory Bar para constatar o descontentamento. O pub é um dos quatro existentes em Stanley, e sair para beber é praticamente o único tipo de entretenimento noturno.
As temperaturas nas Malvinas chegam facilmente a zero grau, mesmo no verão, e os ventos são fortes. Os pubs, bem ao estilo inglês, funcionam até as 23h (respeitando as leis antigas britânicas), servem cerveja quente em pints, além dos fish and chips (peixe com batatas fritas).
No Victory fazem sucesso canecas de insulto aos argentinos que os moradores não deixam de considerar invasores. No banheiro, um vaso sanitário aparece com a imagem de Leopoldo Galtieri, o presidente da junta militar que governava o país na época da guerra.
Ryan, que jogava sinuca no bar, diz que até gostaria de ver seu país tornando-se completamente independente do Reino Unido — atualmente as Malvinas só dependem dos britânicos nos setores de política externa e defesa. Mount Pleasant custa cerca de R$ 226 milhões por ano, ou 0,5% do orçamento militar do Reino Unido.
“Mas como ser totalmente independente se os argentinos vivem ameaçando a gente? Não temos como nos defender sozinhos”, alega Ryan.
Chevron tentou indevidamente alcançar a camada pré-sal
As petroleiras Chevron e Transocean tentaram indevidamente alcançar a camada pré-sal no campo de Frade, afirma o Ministério Público Federal (MPF). Na denúncia apresentada quarta-feira à Justiça contra as empresas, o procurador da República Eduardo Santos sustenta que elas “buscavam explorar a camada do pré-sal brasileiro, tendo se lançado a perfurar sem condições técnicas e de segurança”. As petroleiras negam a acusação.
Para Santos, há “indícios de que não havia a intenção de parar a perfuração enquanto não se atingisse o pré-sal”. Na tentativa, teria ocorrido a ruptura de alguma estrutura do poço perfurado, dando origem ao primeiro vazamento, de 7 de novembro.O procurador conclui que os denunciados devem responder criminalmente por terem tentado produzir petróleo em desacordo com as licenças e autorizações recebidas dos órgãos competentes. “É certo, tal como exposto pela Agência Nacional do Petróleo (ANP), que o contrato de concessão dos blocos petrolíferos pertencentes à União cobre as profundidades conhecidas como pré-sal. Entretanto, não é menos certo que a exploração e produção efetiva dos hidrocarbonetos, se demandam atividade maior e mais complexa do que a inicialmente prevista nos instrumentos legais, devem ser comunicadas, avaliadas e especificadas pela ANP previamente”, escreveu Santos na denúncia encaminhada à Justiça.
O secretário de Ambiente do Rio, Carlos Minc, defendeu ontem que uma parte dos royalties do petróleo seja usada para equipar órgãos de fiscalização. “Além de uma coordenação forte, deve haver uma estrutura poderosa, em parte bancada pelo governo e em parte pelas empresas. Não é admissível que, em uma atividade tão rentável como o petróleo, quem fiscaliza, como o Ibama e a ANP, tenha uma estrutura tão precária de helicópteros e satélites para monitorar. Há um desequilíbrio. Quem dá a licença deve ter equipamentos para fiscalizar”, disse o ex-ministro do Meio Ambiente. Minc deverá reunir-se hoje com a direção da ANP.